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Desde os primeiros dias em que tomamos conhecimento dos fatos relativos ao desaparecimento dos uruguaios tínhamos quase a convicção de que pelo menos duas mulheres participaram de sua consecução, havendo-se envolvido com as crianças durante o período em que todos estiveram detidos no DOPS.
Em janeiro de 79 Camilo afirmara ao repórter Pedro Maciel, da "Veja", que ficara sob a guarda de duas pessoas: "una mujer alta y rúbia y otra oscura, de pelo redondo".
A "rúbia", suspeitávamos nós, deveria ser uma loira subordinada ao Seelig, mas nunca soubemos nada de certo a respeito.
Já se tinham passado cerca de quatro meses e a participação dos funcionários não se esclarecera em nada.
No mês de fevereiro fomos surpreendidos por um novo telefonema, que iria começar a descerrar o véu de mistério que repousava sobre o envolvimento policial no "desaparecimento".
Minha empregada atendeu e uma voz comunicou o seguinte:
-- Diga ao Dr. Ferri para procurar o Irmão Angelo, num colégio da Capital, pois ele sabe o nome da mulher que cuidou de Camilo e Francesca no DOPS.
Era o tipo da pista difícil de ser seguida, em virtude da quantidade de escolas administradas por religiosos em Porto Alegre. Por isso não dei muita atenção prática à notícia. Nem bem passara uma semana, porém, e meu filho. Omar Ferri Jr., de dezesseis anos, me disse que um professor desejava falar comigo sobre algo muito importante.
Na mesma tarde procurei o referido professor, que me informou que uma funcionária do DOPS, de nome Lenira, exreligiosa, fora quem cuidara das crianças. Por causa do nervosismo, ela tinha-se retirado para Candelária.
Alguns dias depois, recebi uma visita do Luís Cláudio, que foi a meu escritório para verificar os nomes dos funcionários do DOPS ouvidos na sindicância.
Atendendo seu pedido, forneci uma cópia dos documentos e ele foi lendo em voz alta o nome de cada um dos depoentes. De repente ele disse:
-- Faustina Elenira Severino.
Dei um pulo na cadeira e pedi a ele:
-- Repete, de novo.
-- Faustina Elenira Severino!
-- É ela! exclamei.
-- Ela quem?
-- A mulher que cuidou do Camilo e da Francesca. Vi esse nome dez vezes e não me dei conta.O nome que o professor me falou é Elenira, e não Lenira. Eu ouvi mal.
-- Vamos, retrucou-me Luís Cláudio, conta toda a história. Em questão de minutos relatei a ele tudo o que ocorrera com respeito ao nome da funcionária do DOPS.
E novamente estalou outra descoberta. Exclamei:
-- A Faustina é irmã do Delaro. Do Delaro Severino, te lembras?
-- Claro, aquele que defendeste no dia que começou o seqüestro. Foi por isso que ela te telefonava dizendo que te devia favores . . .-- Mas -- acrescentei -- para a história fechar temos de saber se a Faustina é preta, porque essa é a cor do Delaro. Em segundo lugar, temos que saber se estudou em convento de irmãs.
Já estávamos empolgados com a nova descoberta, à semelhança de outras oportunidades anteriores. Tínhamos a impressão de haver retomado o fio da meada. E agora ela iria desenrolar-se. Nossas válvulas de pressão interna nos impulsionavam a uma açao em alta velocidade. Programamos nossas tarefas e Luís Cláudio perguntou:
-- Quanto tempo precisas para conseguir a confirmação da cor e do convento?
-- Uma hora ou uma hora e meia, respondi.
-- Então viajo agora para Venâncio Aires.
-- Vai com calma. Não te esqueças do episódio do Janito, que furou.Ele me olhou e disse:
-- Desta vez não vamos furar o esquema.Eu sai, porém levei muito mais tempo do que o previsto.
Mas, no colégio onde já estivera, obtive as respostas que desejava, e eram positivas.
Quando retornei ao escritório, o Luís Cláudio já telefonara duas vezes de Venâncio Aires, pois chegara lá em menos de duas horas. Depois de uns cinco minutos o telefone tocou de novo. Era ele, e estava furioso.
-- Aqui em Venâncio Aires não tem convento nenhum, pó.
-- Mas quem foi que disse que era Venâncio Aires?
-- Tu mesmo!
-- Puxa! Foi engano. A cidade é Candelária.De fato, em Candelária, que fica a poucos quilómetros de Venâncio Aires, havia um convento de freiras, mas Faustinajá não estava mais lá.
No dia seguinte Luís Cláudio já descobrira o endereço de Faustina em Porto Alegre. Ele estava agindo a todo vapor.
Tinha razões para tanta pressa. Em breve seria ouvido na CPI e queria juntar o nome de Faustina a outros que já se acumulavam em seu bolso, prontos para serem denunciados como co-participantes. Eram Arvandil Ferreira da Silva, José Cecílio da Cunha e Luiz Nunes Silveira, o "Chucha".
Faustina residia bem próximo ao prédio da Secretaria de Segurança, no número 51 7 da rua Prof. Freitas de Castro.
Vários fotógrafos e repórteres para lá se dirigiram. Quando ela, entreabrindo o postigo e olhando, se apercebeu de que era alvo da imprensa, entrou em pane. Disse que não daria entrevistas e, quanto ao caso, nada sabia.
Mas o importante não era que falasse, era que fosse fotografada, o que foi conseguido por Ricardo Chaves da "Veja".
Um dia depois essa foto estava em Montevidéu, com Pedro Ma- ciel, que a exibiu para Camilo. O menino não teve nenhuma dificuldade em reconhecer aquela mulher escura, de "cabelo redondo", daquele "quartel cerca dei arroyito".
A 17 de abril, tendo sido convocada pela Comissão, Faustina apresentou-se com um forte hematoma no olho esquerdo. Estava acompanhada por um médico da Polícia, sob a justificativa de que lhe sucediam frequentes desmaios e que, num deles, viera a bater com o olho num canto do fogão.
A depoente afirmou que na época do seqüestro trabalhava no protocolo e, por isso, não poderia ter cuidado das crianças. Acrescentou que, no momento, estava no Centro de Informática Policial, a convite do Delegado Marco Aurélio Reis.
As desculpas eram esfarrapadas e o hematoma no olho sugeria fortes suspeitas de sevícias.
A circunstância de Faustina estar sempre acompanhada de um médico nas ocasiões em que deveria depor ou ser apresentada para identificação permitia concluir que o ÜOPS estava efetivamente preocupado com a escrivã. Por outro lado, ela se considerava bem tratada e recebera até uma "promoçaozinha".
O conjunto de episódios fazia evidente a insegura posição de Faustina: era o verdadeiro calcanhar de Aquiles. Temiam que a m mima resvalada de sua parte pusesse a perder toda a estrutura de mistificações que a artesania policial havia engendrado para safar-se impune.
A policial dizia-se nervosa e que pensava até em internar-se. No inicio de maio estivera presente na Assembleia, onde se realizara o ato de reconhecimento dos funcionários do DOPS.
Cinco dias após seu depoimento na sindicância -- às 18h 15min do dia 7 de maio de 1979 -- Faustina Elenira Severino faleceu.
O atestado de óbito consignou "acidente cardiovascular".
No dia em que estivera na Assembleia não aparentava perturbação de qualquer ordem, parecendo estar bem.
Suspensas todas as hipóteses, ficam as seguintes perguntas, até agora nunca devidamente respondidas:
- Quais os motivos de ter sido cercado o quarteirão em que mo- rava Faustina, logo após sua morte?
- Quais os segredos do auto da necropsia, nunca plenamente esclarecidos?
Suspensas todas as liipóteses, fica o registro da pompa que cercou seu enterro: cinquenta viaturas da polícia civil, com as sirenes abertas; a presença do Governador do Estado, Amaral de Souza: do Vice-Governador; do Comandante do 3º Exército, Gen. António Bandeira: do Chefe do Estado Maior do 3P Exército, Gen. Luiz Henrique Domingues: do Secretário de Segurança, Cel. Leivas Job; do Superintendente dos Serviços Policiais, Luiz Carlos Carvalho da Rocha; do Comandante Geral da Brigada Militar, Cel. Milton Weirich: do Diretor de Informática da Polícia Civil, Dei. Marco Aurélio Silva Reis: do Dei. Pedro Seelig: do advogado Osvaldo de Lia Pires; de inúmeros policiais, além de amigos, de familiares e do irmão Delaro Severino.
Suspensas todas as hipóteses:
-Por que motivo a notícia da morte foi liberada apenas no dia seguinte, pela manha, após a necropsia?
A compacta presença do mundo militar, administrativo e policial causou estarrecimento. Especialmente porque não ocorrera morte em serviço. A causa mortis, em termos oficiais, foi derrame.
O aparato oficial tinha apenas um significado: o sistema emprestava sua presença para o enterro de uma funcionária que, sem qualquer culpa, fora envolvida num lamentável crime em que o maior culpado, indubitavelmente, era o próprio sistema.
Após se terem passado duas semanas, solicitei que Delaro Severino viesse a meu escritório. Indaguei-lhe a respeito da morte da irmã e ele me respondeu:
- Só posso dizer-lhe duas coisas: na tarde do falecimento ela foi vista caminhando com outra pessoa numa avenida perto de sua casa, tranquila e normalmente; no outro dia, no velório, nós (os parentes) verificamos que havia um corte na parte de trás de sua cabeça.
Delaro nada podia fazer. Sua situação era delicada: já cumprira um décimo da pena, tinha bom comportamento, conseguira serviço externo e não se podia dar ao luxo de manifestar o que pensava ou sa- bia, sob pena de um flagrante, sob qualquer pretexto, com a decorrente volta ao presídio.
A morte súbita de Faustina me fizera recordar aquela série de mortes, em circunstâncias misteriosas, que se sucederam ao assassinato do Presidente Kennedy.
Faustina já fora misteriosa em vida: poucos amigos, uma experiência religiosa frustrada e, com seus quarenta e dois anos, ela era, dentre todos os funcionários envolvidos, a parte mais fraca. Cedo ou tarde prestaria informações decisivas em favor da verdade.
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