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Era o dia 1° de novembro de 1978. O telefone tocou no Comando do Exército:
-Olá!
- É do Comando do Exército?
-- Sim senhor.
- Comunico que na rua ... nº ... pode ser encontrado um requerido.O Comando passou o informe ao Departamento II, e este, à Companhia de Contra-Infonnações, cujos emissários se dirigiram a uma casa na Vila Cólon. Lá instalaram uma ratonera. No outro dia, às dez horas da manha foi preso Carlos Amado Castro Acosta.
A seguir caíram sucessivamente vários companheiros seus, todos militantes do Partido por La Vitória del Pueblo - PVP, como Hermann Steffen Artigue, Carmen Potência Aguirre Chavez, Manuel Vila Peres, Rosário Engracia Pequito Machado, Luiz Alonso, Roni Cari Steffen Aguirre, Nelda Marlene Chanquelt Ortiz, Pedro Esteban Sarracho Coitino, Marta Roman e Ana Salvo.
O Capitão Eduardo Ramos deu início aos interrogatórios, que se alternavam com violentas sessões de tortura. Nos lábios dos torturadores aflorava um sorriso que denunciava o ódio gratificado, uma vez que tais detenções atuavam positivamente sobre aquelas mentes doentias e animavam os soldados a desejarem mais informações.
Os presos tinham algo em comum: distribuíam em Montevidéu um jornal clandestino chamado Compancrü, editado pelo Partido por la Vitória del Pueblo. Da Capital uruguaia, o panfleto era remetido a diversos outros países, entre eles o Brasil. Uma tortura rápida e eficiente faria com que viessem à tona os nomes dos contatos brasileiros.
Hermann Steffen Artigue foi o primeiro a "fraquejar". Era muito duro para ele, um homem com mais de sessenta anos, tolerar por muito tempo os métodos empregados. Assim, o ancião referiu que se encontrava com um contato na divisa do Chuí, e que naqueles dias teriam novo encontro.
Ao mesmo tempo, começaram o "interrogatório" de Rosário, por suporem que uma mulher teria menor resistência. Enganaram-se: Rosário era das "duras".
Prepararam um "tacho", que é um tonel grande cortado ao meio e cheio d'água. Enfiaram-lhe um capuz impermeável, amarraram seu corpo numa tábua e colocaram sua cabeça dentro dele, mantendo o tratamento durante um dia.
No segundo dia foi despida e algemada com as mãos às costas. Dependuraram-na pelas algemas num "gancho" e davam-lhe pancadas. A dor era insuportável. Quando desmaiava, era retirada. Reanimavam-na e, cerca de meia hora depois, tudo recomeçava.
No quinto dia, após ameaças de represália contra seus familiares, semimorta e alquebrada, delatou Lilian e Universindo - Maia e Lalo -- como contatos residentes no Brasil.
Dessa informação surgiu, no seio da Companhia, a ideia de mandar a Porto Alegre um comando clandestino para prendê-los, proposta que foi rejeitada da pelo Cel. Calixto de Armas por temor de que causasse um atrito internacional.
Por ponderação do comandante, julgaram que seria preferível estabelecer contato com um oficial brasileiro da mesma hierarquia e, após, enviar emissários para acertar o esquema.
A ideia foi aceita. O Chefe da Companhia telefonou para um coronel em Porto Alegre, que concordou com o plano, reivindicando que a operação fosse executada por brasileiros. Tudo leva a crer que essa ligação inicial tenha sido feita com o Cel. Átila Rohrzetzer, Diretor do DCI -- Departamento Central de Investigações, da Secretaria de Serança Pública do Estado.
Depois desse contrato, o Cel. Armas enviou à Capital gaúcha seu subordinado direto. Major Bassani e o chefe da Secção de Operações, Capitão Eduardo Ramos. Esses oficiais deram início às conversações preliminares, depois ultimadas pelo Major Carlos Rossel, que viajou
também a Porto Alegre. Nessa ocasião, ficou estabelecido um código especial para o caso, em vista das comunicações por telex com a Companhia.
A operação - denominada Zapato Roto - foi posta em prática na segunda semana de novembro.
Um caminhão de três toneladas - cedido pelo interventor da CADA -- Comissão Administradora de Abastecimento, Capitão Armando Mendes, Oficial da linha dura muito parecido com Ferro, por sua brutalidade - transportou para o Chuí, algemados e encapuzados, Luiz Alonso, Hermann Steffen Artigue, Rosário e Marlene, sempre vigiados por vários soldados da Companhia.
Os oficiais. Ferro e Yannone, viajaram num Fiat-128, mas Junto, deslocou-se uma kombi, dirigida pelo soldado Hugo Walter Garcia Rivas e um companheiro que, posteriormente, conduziria as pessoas que seriam detidas até a Capital uruguaia.
A primeira etapa consistia em alcançar a cidade uruguaia do Chuí, onde Steffen deveria encontrar-se com um militante. Ficaram alojados no hotel de turismo do Paradouro São Miguel (Forte São Miguel), há cerca de 16 quilómetros do Chuí. Em seguida, pegaram Steffen e foram até o ponto em que ele deveria encontrar-se com seu contato. Mas havia um detalhe que os militares uruguaios não conheciam. A pessoa com quem Steffen deveria encontrar-se era seu próprio filho, Hermann Steffen Aguirre, que estava exilado havia alguns anos na Europa. O pai, todavia, não iria entregá-lo, motivo por que dirigiu-se para outro local. Mais tarde escusou-se, alegando que o contato não viera.
Após esse incidente, retornaram ao Forte São Miguel. Imediatamente, Ferro e Yannone se dirigiram ao Posto da Polícia Federal, de onde foram conduzidos por veículos brasileiros até Porto Alegre, sendo acompanhados por Rosário, Luiz Alonso e Marlene que, em épocas anteriores, seguidamente tinham vindo a Porto Alegre para sucessivos contatos com Lilian e Universindo. Foram instalados no DOPS, em celas distintos, incomunicáveis.
Na Capital do Rio Grande, novo imprevisto os aguardava. As pessoas que procuravam haviam alterado seu endereço. Além disso, eles encontraram dificuldades para localizar a rua cujo nome, tanto Rosário como os demais, diziam ter esquecido.
Durante alguns dias, acompanhados por policiais brasileiros e em carros brasileiros que se comunicavam por rádio, recorreram vários bairros da cidade, a fim de localizarem o apartamento de Lilian. A busca resultou infrutífera.
Diante desse impasse, malogrando o empenho pessoal, deram início a um esquema de controle das bancas que recebiam jornais uruguaios e de pontos de embarque e desembarque, telefónicas e lancherias.
Pela coleta de outros dados em poder dos militares uruguaios, o "braço armado" do PVP teria programado uma reunião que seguramente se realizaria na residência de Lilian, motivo por que aqueles dias eram sumamente importantes para os oficiais invasores. Se não efetuassem alguma prisão, a missão ficaria totalmente frustrada.
Montaram dispositivos de espreita, portanto, em vários pontos que consideravam estratégicos. E, num sábado, decidiram que, na manha seguinte, um dos militares uruguaios, juntamente com Seelig e oito policiais do DOPS, se deslocariam, bem cedo, para a Estação Rodoviária, situada no centro da cidade.
Nesse mesmo dia, já quase à noite, Lilian recebeu um telegrama que a chamava para ver uma pessoa. Por isso, no domingo de manha pediu a Yano - assim chamava Universindo - que ficasse com Camilo e Francesca, sugerindo até que fossem ao estádio Beira-Rio para assis- tirem ao jogo do Inter contra o Caxias, pois ela não sabia por quanto tempo ficaria ocupada.
Em seguida rumou para o hotel, em busca da pessoa, mas não a achou. Não era a primeira vez que isso tinha ocorrido. Em várias outras ocasiões tinham acontecido desencontros e mal-entendidos. Lilian deixou-lhe um bilhete, dizendo que iria até a Rodoviária e retornaria dentro de meia hora.
Era o dia l2 de novembro de 1978.
Às onze horas da manha, Lilian estava entrando na rodoviária quando os policiais a detiveram, para pedir os documentos. Como já havia presenciado no Rio procedimentos idênticos e, inclusive, Universindo havia sido detido em Porto Alegre, não atribuiu maior importância ao fato. Com a identidade em mãos, conduziram-na ao posto policial situado no próprio prédio da estação.
Ao entrar, foi cercada. Após alguns segundos perguntaram-lhe onde estavam Universindo e Steffen. Nesse momento percebeu que havia caído, mas já era tarde. Poderia ter gritado, mas - rodeada por dez tipos e já dentro da repartição - isso seria inútil. Ficara paralisada pelo fato de que, num dos bolsos tinha o endereço do apartamento, e que, até tarde da noite, Yano não se daria conta de nada.
Lilian respondeu que não os conhecia.
Os policiais se entreolharam. Um deles meneou a cabeça, dizendo para um subalterno que a levasse até à caminhonete, onde, agachada, foi conduzida ao DOPS. Lá ninguém falou. Foi desnudada, encapuzada e espancada. Após, ligaram os cabos da maquineta de choques em suas orelhas e dedos. A tortura começou.
Os policiais interrogavam e torturavam, mas não queriam um tratamento para matar nem para rebentá-la. A todo instante controlavam o pulso. Lilian teve a impressão de que tinham medo de que aquelas atitudes causassem um mal maior.
Ela não gritava. A chefia brasileira - constituída de Jair e Ataliba, os nomes de guerra de Seelig e Rohrzetzer - estava preocupada, mas Ferro e Yannone, um deles denominado "El Isidorito", pediam para aumentar a voltagem.
De repente, numa carteira que examinaram, deram com o endereço da rua Botafogo. Lilian se pôs a gritar, dizendo que lá estavam seus filhos e que eles iam também desaparecer como os outros. Seelig, porém, misto de torturador e diplomata, tática que sempre usou, assegurou-lhe de que nada iria acontecer.
Desesperada, Lilian suplicava-lhes que deixassem as crianças com a vizinha. Seelig demonstrou concordar e partiram logo rumo ao Menino Deus.
Naquele momento Universindo saía com os menores para ir ao futebol. Foi preso e, a bofetadas, o jogaram para dentro de um automóvel. Lilian dirigiu-se ao apartamento fronteiro, mas quis o diabo que não houvesse ninguém. Seelig continuava afirmando que as crianças não seriam molestadas.
Da Botafogo, retornaram ao DOPS, onde permaneceram o resto do domingo. Algum tempo depois, Lilian já estava mais calma. Seu estado de ânimo alternadamente oscilava entre o desejo de viver e morrer.
Lembrava-se de Hugo, seu ex-marido, que havia sido contra sua vinda para o Rio Grande em virtude da proximidade com o Uruguai e do perigo que isso implicava. Ele a culparia para sempre.
Na realidade, não sabia identificar as origens exatas de seu desespero. Em seu mundo interior, os personagens se acumulavam num vaivém agitado e desconexo - era Hugo, desesperado; a aflição de Prieto, de Cores e de Maria, companheiros do PVP; de Ana Salvo, em Montevidéu, que, como ela, fora sequestrada.
Acima de tudo, via a repressão de um Estado feroz, que se instituíra em algoz e que se multiplicava para cultivar a miséria física e moral de suas vítimas. Sentia que seu mundo vinha abaixo.
E seus filhos? E os filhos de Ana?
Tudo se apresentava de forma angustiante e brutal. Por nada queria aceitar a volta ao Uruguai, de onde tinha certeza de que não sairia inteira. Lembrou-se do "Velho e o mar" - era preferível a destruição à derrota.
Mas não dispunha mais de qualquer certeza nem convicção. Sabia que amava sua família, seus filhos, sua causa, seu povo caído sob a força insana de uma ditadura implacável.
Morrer por morrer, era preferível morrer no Brasil.
A ideia da volta a apavorava. Por isso tinha que reagir.
Naquele momento se apresentava uma oportunidade: Francesca queria ir ao banheiro. Havia muitos homens de guarda, além de duas mulheres. Estas aquiesceram ao pedido da menina e Lilian se foi para a toalete. Lá dentro, quebrou seu espelho e tentou cortar-se, mas apenas obteve feridas sem gravidade. Depois, imaginou atirar-se pela escadaria, mas, pela quantidade de vigias, viu que ficaria imobilizada.
Camilo a tudo observava, tenso e angustiado. Olhava o sangue correndo pêlos braços da mãe, cujo desespero sentia crescer, e ouvia o choro convulsivo de Francesca. Precisava fugir. Tinha que sair daquele inferno. O que ia fazer depois, não sabia. Agora, o importante era escapar daqueles homens que atormentavam sua mãe.
Não compreendia porque, naquele "quartel", os militares não usavam farda.
Ele e Francesca estavam esquecidos num canto quando os outros rodearam sua mãe para acalmá-la e curar seus ferimentos. Inclusive a mulher escura, de cabelos redondos, que tinha a incumbência de atendêlos.
Viu que o corredor até a escada estava livre. Não pensou mais. Pegou Francesca pela mão e saiu depressa. Mas, ao tentar descer as escadas, alguns homens vinham subindo. Decidiu voltar e subir. Foi até ao andar de cima. O prédio tinha só três andares. Ali estava o final de sua fuga.
A noite se aproximava. O DOPS estava tumultuado. Muitas pessoas entrando e saindo, telefonemas, máquinas de escrever, conversas e confabulações. Tudo indicava que estavam sendo tomadas decisões rápidas.
Aí pelas 22 horas aproximou-se o "Dr. Jair" para informar que viajariam em alguns minutos. Esse era o comunicado que não quereria jamais ter ouvido. Teve coragem para reagir:
-- Os senhores não podem me deportar. Aqui existem leis. Nada fiz. Estou aqui legal.
-- Nossa tarefa é entregá-la na fronteira.
-- Lá eles vão me matar.
-- O que acontece do outro lado não é problema nosso.
Seelig queria desembaraçar-se com a maior urgência dos detidos. Poderiam surgir complicações. O DOPS não queria problemas com crianças.
Seelig e Ferro prepararam uma "confissão" de Lilian e Universindo ao Governo brasileiro em que relatavam as atividades que "desenvolviam" no Brasil, e que os haviam detido em território oriental, no momento em que iam entregar Camilo e Francesca aos avós.
Essa declaração, obviamente, nunca apareceu.
Logo após, começaram a viagem, usando dois automóveis: num, algemados e encapuzados, iam os prisioneiros adultos - Lilian, üniversindo, Rosário, Marlene e Luiz Alonso; no outro, as crianças.
Na fronteira ficaram em dois quartos do prédio da Polícia Federal, os meninos separados. Os soldados que os aguardavam em São Miguel foram convocados para buscá-los.
Didi Pedalada os acompanhou até o forte.
Para o DOPS, a operação estava concluída.
Mas Lilian tinha se apercebido da pressa e da preocupação dos brasileiros. Por várias vezes, naqueles dias, ela havia deixado transpirar que, durante a semana, haveria um amplo encontro no apartamento, fato que era verdadeiro.
Para Ferro e Yannone, as prisões que haviam feito realmente não compensavam. Não se justificava todo aquele esquema altamente sigiloso, toda aquela movimentação e as ramificações do plano, envolvendo a polícia gaúcha, para chegar apenas à detenção de duas pessoas que nem sequer tinham contra si qualquer ordem de captura. Ao invés do "braço armado" que procuravam, tinhas capturado modestos braços deportados.
A reunião não lhes saía da cabeça. Eles queriam Hugo Cores, Hermann Steffen, Ofélia Mont'Serrat e o "Gordo", que provavelmente teriam chegado da Europa com a intenção exclusiva de se reunirem aqui.
Por outro lado, Ferro sabia que pisava em terreno seu. Estaria em casa, poderia eliminá-los e dar outro destino às crianças, assim como em tantas outras oportunidades haviam feito o OCOA, o SID e o próprio Departamento. Tudo então estaria terminado, e os brasileiros tranqüilos.
Refreando seus instintos mórbidos. Ferro foi direto a Lilian:
- Ou colaboras ou ... "desaparecidos".
Era a política do "delata ou morre."
Lilian entendia a força daquelas palavras vomitadas pelo verdugo da nova Suíça, a Suíça sangrenta.
- Colaboro, respondeu. No âmago, era o que desejava.
Lilian supôs que o fato da reunião convencera os brasileiros do desdobramento do plano. Para isso, deveria separar-se dos filhos. Permitiram que chegasse até eles para dizer:
-- A mãe volta para buscar as malas.
Seria um amargo regresso. Ela imaginava que mais tardar quarta ou quinta-feira, quando muito, todos saberiam de sua desaparição. Os fatos confirmaram sua intuição.
Na terça-feira já estava de volta ao apartamento da Botafogo, acompanhada pelo Capitão Ferro e mais cinco brasileiros. Yannone havia permanecido em São Miguel.
Na quinta-feira, dia 16, chegou um telegrama da Europa, expedido por Rubem Prieto, pedindo que Lilian telefonasse. Levaram-na ao Departamento e exigiram que fizesse a ligação. De início negou-se, mas depois ocorreu-lhe que poderia dar a entender alguma coisa sobre sua situação.
Alcançaram-lhe o aparelho. Ela discou: primeiro o código internacional, depois o da França, depois Paris. E, afinal, o número 805-8153. Rubem atendeu:
--Olá!
-- Como vais? -- Prieto reconheceu a voz.
--Está tudo bem, Maia. Há dias que não sabemos de nada. Ocorreu algo grave?
-- Nada me ocorreu, estou bem.
-- Então por que a demora em dar noticias?
-- Eu não vi o Steffen. Por que ele não veio?
Aí estava a mensagem. Prieto tinha certeza de que há uns cinco dias Steffen se encontrara com Lilian. Como poderia ela estar fazendo aquela pergunta? Depois, havia ainda aquele tom de voz, o estranho jeito de falar . . .
Há anos Rubem vinha lutando contra a ditadura uruguaia. Era um dos dirigentes do PVP. Todas as palavras, para ele, tinham peso. Habituado ao planejamento, na Europa, de movimentos contra o Governo uruguaio, não se permitia a diálogos em torno de banalidades. O telefonema de Lilian era raro e inexplicável. Só falara amenidades, com exceçao da referência a Steffen. Então, cogitou Prieto, havia policiais ao lado dela - Lilian tinha caído.
Prieto não pensou mais. Nos minutos seguintes fez duas ligações -- uma para Milão, outra para São Paulo.
De Milão, Mirtha transmitiu a apreensão de Prieto a Da. Lília, em Montevidéu, que logo viajou para Porto Alegre.
Em São Paulo, o contato de Prieto foi com exilados uruguaios que, no dia seguinte, telefonaram a Porto Alegre. Luís Cláudio recebeu, pela manha, dois telefonemas, ambos dados por uruguaios, e eu tive a notícia através de Greenhalg, na parte da tarde.
Estava estabelecido o cerco.
Quando os repórteres bateram na porta, os seqüestradores se agitaram. Precisavam desmontar tudo com a máxima rapidez. Do apartamento foram para o DOPS e, na mesma noite, partiram para o Chuí. Mas, nem para o DOPS nem para Ferro, as coisas tinham terminado aí.
Para o primeiro havia-se aberto um flanco perigoso. Para o desmoralizado capitão uruguaio tinha-se inciado um período de permanente atribulação, pelo que todas as artimanhas deveriam ser empregadas para manutenção do sigilo daquela praticamente frustrada operação Zapato Roto, devassada pela "infeliz" e inoportuna visita dos jornalistas.
Mesmo frente à ligeira desativaçao do esquema, o serviço ainda não estava concluído. Dentro de um álbum de Lilian encontraram uma série de documentos, como também o endereço do hotel Buenos Aires, de São Paulo, onde Hugo Cores recebia correspondência. Por isso Seelig embarcou para lá no dia 21.
Mas viajou contrariado, e certamente apreensivo. Todos os jornais do País publicavam a notícia de um misterioso desaparecimento --um casal uruguaio e duas crianças. A matéria era divulgada com chamadas de primeira página e dava bem a importância que a imprensa atribuía ao assunto. Assim mesmo tomou o avião.
A localização do hotel era fácil. Ficava na "Boca do Luxo", bem no centro da Capital paulista, numa das esquinas da Major Sertório.
Hugo permanecia ainda em São Paulo, mas não estava hospedado no hotel, que era apenas endereço para recebimento de correspondência, que o dirigente do PVP buscava quase diariamente.
Há quatro dias, porém, não aparecia. E Seelig armou um esquema. Era só esperar. Algumas horas transcorreram, interrompidas por um telefonema. O recepcionista se transfigurou. Levantou os olhos em direçâo a Seelig e respondeu a Hugo:
-- Puxa, rapaz, há quantos dias não apareces. -- Tem um monte de cartas para ti.
Hugo desconfiou. Havia muita cordialidade e ênfase na voz do empregado. Algo estava errado. Não apareceu.
E Seelig, como Ferro, teve que engolir sua frustração. Retornou de mãos abanando. Não conseguira a vítima que fora buscar. No mesmo dia em que retornava, um amigo de Janito, sócio do Partenon Ténis Clube, entregava ao Sr. Plavnik, proprietário do apartamento da Botafogo, o falso bilhete de Lilian.
Ferro chegara a São Miguel de madrugada. Nessa mesma manha determinou que todos se mudassem para as cabanas de veraneio dos oficiais, localizadas junto ao forte Santa Teresa, situado a uns vinte quilómetros do Chuí, na rota de Montevidéu, no parque do mesmo
nome. Lá estariam mais seguros, provavelmente em vista do problema havido com os jornalistas brasileiros.
Quando Lilian chegou e não viu seus filhos, que estavam presos numa cabana separada, ficou quase louca.
Aí, depois de instalados, deram início a novos interrogatórios e torturas. Para isso, improvisaram um barrilzinho que encheram d'água. Queriam mais nomes, mais indicações a respeito das pessoas que residiam no Brasil, para transmitir ao DOPS.
Dois dias depois, partiram para Montevidéu.
No caminhão da CADA iam os prisioneiros e os objetos de uso pessoal dos presos que tinham sido levados de Porto Alegre: roupas, um gravador, uma máquina fotográfica e uma máquina de escrever. O material "subversivo" havia certamente ficado em poder do Departamento de Ordem Política e Social do Estado do Rio Grande do Sul. Ali só ia o butim da inglória guerra ...
As crianças foram transportadas numa kombi amarela.
Em Montevidéu, todos ficaram detidos na Companhia, com exceçao dos menores, que foram conduzidos para um apartamento central localizado na Rio Negro y Cauciones, que anteriormente pertencia a montoneros presos, e agora é "propriedade" do Departamento II.
Em 25 de novembro, Camilo e Francesca foram entregues aos avós.
Enquanto isso, na Companhia, desenvolvia-se o macabro festival de tortura. O instrumento: um simples rádio, ligado a todo o volume, sintonizado entre duas estações. O ruído era tão ensurdecedor que constituía tormento até para os próprios encarregados da vigilância.
De lá, Lilian e Universindo foram transferidos para "El Infierno", o campo de prisioneiros em que estava transformado o 13° Batalhão de infantaria. Àquela época, possivelmente não existia no mundo um centro mais terrível de suplício e de violência, somente igualado pelas dezenas de campos de concentração argentinos, conhecidos como pozos ou chupaderos, verdadeiros impérios de terror, entre os quais constavam a Escuela de Mecânica de Ia Armada (ESMA), La Perla, Empresa El Vesuvio, El Jardín, ou Automotores Orletti, Club Atlético, Banco, Olimpo, Campo de Mayo, Sheraton, Pozo, Campito e a Unidad n° 5 de Ia prisión del Buen Pastor. Assim como nesses locais da Argentina, parece que se concentrava em El Infierno toda a carga de ódio acumulada pela ditadura uruguaia, seu diabólico recalque e a fúria sanguinária que armazenara num regime inquisitorial e nazistóide.
No Infierno situa-se a principal base de atuação do OCOA, Organismo Coordenador de Operações AntiSubversivas. Junto aos seus integrantes atuam oficiais do SID, Serviço de Inteligência e Defesa, e membros da chamada Divisão 300, que tem como chefe o Cel. Ramirez, identificado pelo nº 301, sendo dirigidos operacionalmente pelo Maj. Gavazzo, também chamado Oscar 1. A este último toca a nefasta função de gerir a tortura.
Além deles, há o 303, Maj. Manoel Cordero; o 304, Maj. Martinez; o 305, Silveira; e assim por diante, sendo a Divisão composta por sessenta pessoas, entre oficiais e soldados, que constituem os súditos do sinistro reino de Gavazzo.
Para aí são conduzidos os perseguidos políticos e as vítimas dos seqüestros executados no território argentino. O ambiente é tétrico -- cortado pêlos gemidos e gritos lancinantes que a sevícia arranca às gargantas dos prisioneiros. É o paraíso da picana elétrica, do submarino e do colgamiento.
Os prisioneiros, quando não estão sendo interrogados ou torturados de forma direta, permanecem de olhos vendados, mãos algemadas e cabeças encapuzadas, mesmo assim respiram o ar fétido que transpira dos tachos, alheios ao ar ou à luz. Ali, a vida não muda a não ser no horror das sensações que se alternam nas várias formas de sevícia, que vão desde a voz dos esbirros ao clima criado pêlos aparelhos de tortura; desde o penetrante frio do inverno ao abafamento úmido e escaldante do verão.
Muitos prisioneiros sequestrados em Buenos Aires foram libertados sob compromisso. Antes de sair assinavam um documento em que confessavam que tinham sido presos em algum hotel do centro de Montevidéu.
Tanto o OCOA quanto o SID jamais admitiram sequer um seqüestro na Argentina. Além disso, usavam como tática publicar extensas manchetes nos jornais, denunciando a descoberta de vastos planos terroristas e a prisão de grande número de armas e material subversivo, utilizando os modernos processos publicitários para "markering" de seus sombrios procedimentos.
Nesse nefando local estiveram presos Lilian e Universindo, até maio de 1980, quando foram transferidos respectivamente para Punta Rieles e, ironicamente, para Libertad, onde ainda se encontram.
Foi do Infierno que Lilian, com perspicácia e paciência infinitas, conseguiu transmitir algumas informações. Primeiramente, persuadiu um guarda a entregar bilhetes a sua mãe.
Depois passou a usar outro estratagema para enviar notícias e relatar os sofrimentos físicos e psicológicos a que estava submetida, narrando partes essenciais do seqüestro.
Todas as visitas que recebia dos familiares ocorriam na presença de guardas, sendo expressamente proibidos quaisquer assuntos que não versassem sobre aspectos domésticos. Em vista disso, Lilian escrevia extensos bilhetes utilizando uma agulha e o papel aluminizado existente no interior das carteiras de cigarro. Quando o pai ia visitá-la, ambos, imperceptivelmente, depois de terem colocado as carteiras sobre a mesa, trocavam-nas. As letras desses bilhetes, de tão minúsculas, são praticamente inidentifícáveis sem auxílio de lente.
Dessa forma, muitos fatos foram esclarecidos, pois a leitura atenta possibilitou a montagem de uma visão praticamente global dos acontecimentos cujas minúcias, como peças elaboradas com precisão, se foram encaixando e oferecendo ao exame o arcabouço do seqüestro, ao mesmo tempo em que oportunizava um ensaio sobre os componentes psicológicos e sobre os dilemas que Lilian passou a enfrentar com sua prisão.
Após aquele momento, duas pessoas passaram a coexistir, em sua conílituada mente.
Uma delas entendia ser necessário continuar a luta, apesar da queda, da possível e provável derrota final. A outra reagia, ordenandolhe que aceitasse os padrões do sistema - para isso, deveria comportarse, ter boa conduta, transigir, inclusive, pensando na mãe, no pai e nos próprios filhos.
Uma dessas pessoas, porque tinha a convicção de que nunca seria libertada, assinava a declaração que lhe apresentavam os carcereiros, confessando que entrara clandestinamente no País. Mas a outra sofria e se punia por estar aceitando as regras sujas do jogo dos gendarmes.
Uma se arrependia, julgando ter cedido à própria debilidade. A outra figurava a imagem querida dos filhos e os olhos chorosos da mãe, todos desejando o fim daquele pesadelo.
Se uma se dispunha a resistir aos verdugos até à morte, a outra chorava desesperadas saudades das crianças.
Mas nem uma estava pedindo aplausos por sua resistência nem a outra aceitava recriminações por sua fraqueza.
Ambas dentro dela reclamavam por compreensão. Queriam ser entendidas como vítimas de um conflito que as circunstâncias adversas haviam engendrado.
Arrependia-se profundamente porque, numa ocasião em que recebera a visita do Embaixador Italiano, não lhe contara ter sido sequestrada. E essa fragilidade a destruía. Mas de que forças poderia dispor quem já estava quase aniquilada pelo confinamento de uma solitária?
Aquilo era muito pior que a astúcia de a colocarem, ela e Universindo, um contra o outro, na certeza de que a desconfiança é a base da desmoralização e da ruína psíquica. Mas tudo que lhe haviam dito sobre Universindo não a afetaria.
E ele? Que estava tão isolado? Lilian conhecia a força dos dramas de consciência e sentia que, com o tempo, ele acreditaria em qualquer coisa que lhe dissessem:
- A la larga qualquiera puede aflojar.
Por tudo aquilo de ruim que havia experimentado, lembrava-se do que lera em Marx, e adquiria a certeza de que a história avançava pelo lado mau. Os militares os haviam detido para impedir a circulação do Companero, mas se meteram num baile que só os confundiu. Ela e Universindo, no entanto, acabaram sendo as "vítimas que tragariam as pedras dos erros".
Mas qual seria a forma de avançar? Se é que havia . . .
Sua sensibilidade e seu sentimento, num misto de dor e remorso, concretizavam-se em angústia, porque transferira para Da. Lília o pesado fardo da resistência. A ela, que já se sentia enfraquecida por idênticos problemas trazidos por Mirtha, asilada na Itália.
Seria agora a mãe que, de forma permanente e solitária, haveria de percorrer, quase trôpega, mas com fé inquebrantável, os caminhos para a libertação.
Transferira a sua luta a quem já não podia enfrentá-la com o mesmo vigor dos jovens. E dizer que sempre desejara evitar esse duplo sofrimento da mãe...
E, quando se dava conta de que todos estavam sofrendo, dizia a Da. Lília:
Tens que ser forte. Pensa na dor sem esperanças das outras mães.
Sentia que não poderia aceitar que o abatimento e o desespero se somassem à dor. Porque então essa dor seria maior, imensa, infinita. Porque seria uma dor inútil.
Quantas lutas enfrentava ao pensar nas crianças. E o sentir a solidão, feita de pedra e cal roçando-lhe o corpo. A incomensurável solidão que se abate sobre aqueles que, além de estarem sozinhos, se vêem esmagados pelo tacão da injustiça, pelo coturno do poder discricionário, pela bota da repressão, pela pata opressiva do algoz, pela fúria da ideologia anti-humana que encontra na vítima silenciosa e indefesa sua principal razão de existir e de ser.
Mais do que nunca precisava do socorro da fé, para não sucumbir.
Não valia nem mesmo a pena lamentar esses tormentos. Pois bastava levantar os olhos para ver que a injustiça e a dor que se disseminavam pelo mundo estavam a indicar a impossibilidade da sobrevivência.
E, em seus bilhetes, pedia que nao a culpassem ...
Que nao a culpassem por ter nascido num século assim . . . por ter nascido num país assim . . . fazendo parte de urna geracao assim . . . urna geracao que esbanjava a fortuna de suajuventude e vida pelo desejo de melhorar o mundo, a troco de alguns vinténs de líberdade. . .
Transcrição de um dos bilhetes escritos por Lilian em papel aluminizado.
"He decidido escribirles para ver sí logro explicarles algunas cosas. Después de las visitas me gana una inquietud y una confusión que me cuesta un día lograr e! equilibrio. El hecho es que a veces me pedís que tenga buena conducta, que no me comprometa, que tengo que pensar en los gurises y ustedes, etc. Y por otro lado me reprochas que haya firmado, que no le haya dicho al Embajador las cosas del otro lado. Decís que no se puede hacer nada, que a nadie le importa. Todo esto junto es bien difícil de coordinar.
Ahora bien, yo firmé porque en ese momento tenia la convicción de que por nada del mundo me iban a largar porque a los otros los tenían como presión y corrían la misma suerte y sufría por la vieja que estaba loca y quería que todo germinara de una vez. Y también porque tuve miedo, porque vi que el Juez era todo lo mismo y porque las cosas no son tan fáciles. Me siento culpable de eso y bastante sufrí por mi cobardía.
Hice todo lo que pude y ellos me acusan de haber preparado las cosas para que me vieran los periodistas y por eso dicen que les tomé el pelo y que soy "inteligente": si son estúpidos no es culpa mía. No pretendo que me aplaudan pero si que comprendan que dentro de la angustia terrible que viví pensé lo mejor que pude. Es fácil decir que nos les pasaría nada a los gurises, pero vivir el llanto de Francesca cuando nos separamos y la tristeza de Cami ya no es tan simple. Pero dentro de todos mis errores (tener la dirección de mi casa en la cartera y tener cantidad de papeles en casa) yo he buscado defenderme y voy a luchar por mi libertad y la de Yano.
No tengo miedo. Se que puedo bancarme, pero no quiero jugar cartas en el aire. Mi denuncia tiene que ser acompañada de un acto que la transforme en una situación a resolver. Como es una situación delicada yo preferí planteárselas para elegar a un acuerdo. Por eso soy "peligrosa". Tal vez piensen que dilatando las cosas y dejándome sola me van a ablandar. Estoy convencida que los más inteligentes se dan cuenta de que podría crear una situación delicada. La posición que pueden tomar ante una medida me (tiene) confusa, pero pienso que habiendo pruebas suficientes y testimoniando ante un Embajador u otra personalidad, la situación sería interesante. Ahora yo preciso saber si pueden preparar en Italia, Brasil y los demás países una buena campaña. Si creen que lograremos triunfar y si la fecha es oportuna. Esto es lo que quiero lo digas al abogado. Tal vez puedan preparar una misión más oficial que pida para verme y ese sería el momento. (...)
A mi se me ocurre que mamá en Brasil con Cami podría hacer un ayunó simbólico con el apoyo de la curia de San Pablo pidiendo la intervención de las autoridades brasileñas para que nos entreguen a la embajada italiana y sueca anulando el acta falsa con que nos procesaron.
Es importante que se maneje la situación de los dos. Esto supone que en Suecia, Italia y Brasil trabajen con tiempo preparándolo para lograr intervenciones oficiales. No creo que nos trasladen, pero si nos trasladan no cambia nada.
Si me das esa respuesta. Por favor entiéndanlo bien y no me confundan. Aunque me dijeran que no creo que lo haría igual porque no me puedo quedar con los brazos cruzados. La única variante es que ellos se comprometan a dejarme en libertad en 2 años con todas las garantías.
Si es verdad que este milico se va van a cambiar las cosas en las visitas. Yo pienso que sobre esto y cuando hayas hablado con Ferri deberías escribir para saber que piensan. Puedes hacer una bolita envuelta en nylon y traerla en la boca y cuando se pueda me la entregas. No te preocupes que tendré cuidado. Si no te animas nos manejamos con esa fórmula. Pienso que tal vez resulte práctico ir ahora (pero sin prensa), discutir bien todo eso y dejar para septiembre el aviso definitivo porque las cosas llevan tiempo y a ellos se les puede ocurrir otras ideas. Ustedes vean."
Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights