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Diante das novas informações que se acrescentaram ao telefonema de São Paulo, eu considerava que um casal e duas crianças não poderiam simplesmente desaparecer. Por isso decidi que o fato deveria chegar ao conhecimento das autoridades, para que fossem tomadas as providências que a situação estava exigindo.
Naquela mesma tarde me dirigi ao Departamento de Ordem Política e Social-DOPS, à procura de seu titular, o Delegado Marco Aurélio Silva Reis.
Quando o informei dos fatos que tinham chegado ao meu conhecimento, o Diretor do DOPS foi categórico:
-- Eu não acredito que haja implicação nossa.
E acrescentou:
-- Não creio, em hipótese alguma, que os uruguaios tenham vindo aqui, debaixo de nossas barbas, para sequestrar essas pessoas.
Assistiam a esse diálogo duas outras pessoas, uma das quais era o Dr. Agamenon Wladimir Silva. Apesar da aparente segurança da linguagem, o Diretor do DOPS deixava trair, em suas atitudes, intensa preocupação, que, depois, não chegou mesmo a dissimular, pois revelou vivo interesse pelo caso. Solicitou que eu aguardasse mais alguns instantes, para que terminasse de atender àqueles que esperavam e, como havia adiantado, fizesse um contato com a Polícia Federal. Porque, explicou, em se tratando de estrangeiros, poderia ter havido alguma sindicância
por parte desse órgão. Dito isto, afastou-se, juntamente com os outros dois, voltando após uns cinco minutos, declarando-me:
--Telefonei à Polícia Federal e o Delegado Fucks informou que eles não têm conhecimento de nada.
O assunto continuou, embora relacionado a aspectos secundários do problema. Levantaram-se conjecturas, aventaram-se possibilidades e hipóteses. Fazendo uma interrupção, por motivo de serviço, o Delegado afastou-se. Aproveitei então a oportunidade para perguntar ao Dr. Agamenon, que a tudo presenciara, se o Dr. Marco Aurélio permanecera sempre na companhia dele, durante seu primeiro afastamento da sala.
-- Sim, disse-me ele, ficou sempre conosco. Eu estou aqui resolvendo um problema do Chiarello, ex-prefeito de Uruguaiana, a pedido do Deputado Vitorio Trez.
-- Então ele não teve tempo de telefonar a ninguém?
-- Claro que não, pois estivemos sempre juntos.
-- Ótimo. Era o que eu queria saber, respondi.
Com isso, uma parcela considerável de minhas dúvidas estava resolvida. A conduta do Diretor do DOPS deixava plenamente esclarecido que tanto a Polícia Federal como a Estadual estavam a par do ocorrido.
Nesse mesmo dia, em Montevidéu, uma senhora, mãe de duas filhas, se preparava para uma viagem inesperada e urgente. Há dois dias chegara de Milão. Nem conseguira descansar ainda, quando recebeu um telefonema de Mirtha, a respeito de Lilian, a filha mais moça, que estava morando em Porto Alegre.
A intuição materna não deixou que vacilasse: despediu-se do marido e tomou o ònibus que deveria percorrer os oitocentos e cinquenta quilómetros que separam Montevidéu da Capital gaúcha. Era impossível dormir. Enquanto o ònibus devorava o asfalto que corta aquela região, cuja paisagem tem poucos atrativos, sua memória corria em sentido inverso. Olhando para trás, relembrava a infância e a adolescência de Lilian, sua vitalidade e sua animação liderando a Associação dos Estudantes do Magistério e da Resistência Obreiro-Estudantil. Recordava os momentos dramáticos de sua prisão, em 1972, as torturas a que havia sido submetida e a posterior deportação para a Itália, em 1974. Naquela oportunidade, mal tivera tempo de passar por casa, pegar o marido e o filho e dirigir-se, sempre acompanhada pela polícia, para o navio.
Agora, não dispondo ainda de qualquer certeza sobre sua situação, pressentia que tudo estava recomeçando, E com mais gravidade, pois havia a neta, que nascera em Milão. O que seria das crianças? Onde e como estariam? No panorama de dúvidas que a assaltava corria um fio de amarga certeza: os uruguaios haviam ido buscá-los.
E a angústia acumulada encompridava a viagem. Já quase amanhecia quando o ònibus fez uma parada -- haviam chegado à fronteira. Após retomar seu lugar. Da. Lília deu com os olhos no jornal que um dos passageiros havia comprado e que estava lendo. Ansiosamente aguardou que terminasse de folheá-lo e pediu emprestado. Não houve necessidade sequer de abri-lo. A primeira página estampou a seus olhos, ostensivamente, uma manchete: "Denúncia de seqüestro investigada". A noticia estava em página interna. Localizou-a falava de um misterioso desaparecimento. E reproduzia fotograficamente o bilhete que Lilian deixara. Foi nele que se fixou sua atenção.
Olhou, leu, releu. E o bilhete se lhe tornou claro, evidente. Foi seu primeiro contato com a crua realidade dos fatos, embora não conhecesse qualquer de seus detalhes.
Quando desceu do ònibus, carregava apenas um casaco e uma bolsa, além da grande incerteza. Tomou um táxi e perguntou ao motorista:
-- O senhor conhece este jornal?
-- Conheço, sim. É a "Zero Hora". Fica bem perto daqui.
-- Me leve até lá, por favor.
Não fosse aquele jornal, certamente nem teria sabido como proceder.
Na "Zero Hora" foi recebida pelo repórter Milton Galdino, que imediatamente entrou em contato comigo, pedindo que fosse até lá com a máxima urgência.
Foi assim que conheci Da. Lília.
A notícia de sua chegada espalhou-se como um rastilho aceso. Ela não queria falar, mas a imprensa a cercava, insistindo por informações. Concordou então que daria uma entrevista coletiva às dezesseis horas.
Enquanto isso, eu já havia preparado duas representações: uma para Serviço de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras; outra à Delegacia de Atentados à Pessoa. Formulei pessoalmente a denúncia à Polícia Federal. À Polícia Estadual dirigi-me na qualidade de procurador de Da. Lília.
Nesses documentos, além de mencionar a desordem em que se achava o apartamento, levantava a hipótese de ter ocorrido um seqüestro, solicitando, em ambos, providências para esclarecimento.
Ocorre que estavam em poder da Polícia Federal o original do bilhete de Lilian, seu passaporte e o contrato de locação do apartamento, que havia sido entregue pelo proprietário. Tanto a assinatura como a grafia do bilhete foram cotejadas com as assinaturas constantes nos demais documentos. Assistiram ao exame um Delegado Federal e o jornalista Milton Galdino, e todos concluímos pela inautenticidade do bilhete. Para mim, essa circunstancia constituía algo sumamente importante. Já era uma certeza. A primeira certeza.
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