Seqüestro no Cone Sul
A primeira duda

Nada, naquela sexta-feira de novembro, prenunciava tempestade. Sequer chuva ou garoa.

Pelo contrário: a primavera impunha-se no azul do céu, no branco difuso das nuvens passageiras, no brilho rcmansoso do Guaíba, filtrado pêlos vãos entre os edifícios do centro de Porto Alegre. Além dos pré- dios, imaginei árvores florindo.

Sobre a mesa, os papéis que cinco dias sorrateiramente haviam acumulado. Acabara de revisar os documentos relativos a um caso que deveria defender na semana seguinte, de meu cliente Delaro Severino.

A calma de tudo parecia antecipar o torpor do fim de semana que estava por chegar.

Enquanto eu procurava meios para começar a enfrentar a desordem de meus documentos, o telefone tocou. Uma voz feminina anunciou que Luís Eduardo Greenhalg desejava falar comigo e pediu que aguardasse para completar a ligação.

Luís Eduardo é membro do Comité de Defesa dos Direitos Hu- manos para os Países do Cone-Sul, entidade vinculada à Arquidiocese de São Paulo e conhecida pela sigla CLAMOR.

-- Ferri, preciso de um favor teu.

-- Tudo bem. Às tuas ordens.

-- Estamos com muita dificuldade de comunicação com uma refugiada política que mora em Porto Alegre. Lembrei-me que eras a pessoa indicada para nos dar um auxílio. Essa moça residiu no Uruguai. Por motivos políticos foi obrigada a sair. Morou em Milão algum tempo e há um mês, mais ou menos, entrou legalmente no Brasil. Chama-se Lilian Celiberti Rosas de Casariego, veio com dois filhos: um menino de 9 anos, Camilo; e a menina, que tem 3. O endereço dela em Porto Alegre é na rua Botafogo, 621, bloco 3, apartamento 110. É possível que Universindo Diaz, também refugiado, que estava na Suécia, more com eles.

-- Você desconfia que algo de grave lhes tenha ocorrido?

-- Não sei. A verdade é que Lilian marcara encontro com várias pessoas que vieram da Europa e não apareceu.

-- Algum problema político, ou coisa assim?

-- Estamos suspeitando de um seqüestro. Lilian era líder do ma- gistério, quando estava no Uruguai. Universindo estudava medicina e desenvolvia também atividades de liderança estudantil. Por isso foram deportados.

-- Queres que eu vá lá agora?

-- Não. Não larga teus afazeres. Mas gostaria de que fosses ainda hoje.

-- Está bem. Passarei por lá e farei contato contigo.

Anotei todos os dados e, algo excitado pelo telefonema que recebera, atirei-me à ordenação de meu material de trabalho. Estava ansioso por encerrar minhas tarefas, a fim de satisfazer a curiosidade que nascera a partir da ligação. Mesmo assim, só consegui desincumbir-me de tudo quando já era noite.

Ao chegar à rua Botafogo deveriam ser umas nove horas. O bloco três do nº 621 fazia parte de uma série de construções para classe média. Fui entrando por um corredor externo, que me levou até o 110, no térreo. Apertei a campainha. Não ouvi nada. Fiquei examinando, por fora, para descobrir se o apartamento seria tão grande que eu não ouvira a campainha tocando. Não me pareceu. Premi novamente o botão e constatei que não funcionava. Bati. Nada. Decidi então redigir um bilhete, com meu nome, endereços, telefones, e o introduzi sob a porta.

Em seguida procurei a casa do zelador e disse-lhe que desejava dar um recado aos moradores do 110. O homem meneou a cabeça, franziu as sobrancelhas e disse:

-- Acho que foram passar fora o fim de semana. Ainda hoje de manha vi as crianças brincando no pátio.

Saí mais tranqüilo. Não obstante, retornei ao apartamento na manha do sábado. Ninguém. Voltei de tarde. No dia seguinte, embora meio sem esperança, pois era domingo, fui duas vezes: pela manha e à tarde. Positivamente não estavam e, mais do que isso, numa de minhas visitas encontrara novamente o zelador e eleja não demonstrava certeza sobre ter visto as crianças na sexta de manhã.

Na segunda, dia 20, como tinha o júri do Delaro Severino -- numa estranha coincidência que só os fatos posteriores irão esclarecer --, fui cedo para o escritório, a fim de proceder a uma revisão do trabalho e definir as linhas básicas da defesa.

O julgamento prolongou-se desde as catorze até às vinte e uma e trinta. Já me preparava para sair, empilhando os livros absortamente, quando um grupo de jornalistas se aproximou. Um deles, se não me engano o José Mitchell, do "Jornal do Brasil", me disse que precisavam falar comigo urgentemente. Pensando que desejavam algum comentário sobre o resultado do julgamento, respondi de imediato:

- Não vejo qualque. necessidade de manifestação minha, pois o Juiz já prolatou a sentença.

Diante da resposta, o Erni Quaresma, da sucursal de "O Globo", abriu, em forma de leque, um maço de folhas entre as quais estava o bilhete que eu havia deixado no apartamento de Lilian.

- É sobre isto que queremos falar.

Notei que todos estavam tensos e ávidos de informações. Pediam pressa para uma explicação minha, pois os jornais do Rio e de São Paulo, como os de Porto Alegre, estavam aguardando alguma notícia para fecharem suas edições.

Retiramo-nos para a Sala de Audiências do Tribunal e perguntei como haviam chegado ao meu bilhete, se o apartamento estivera fechado.

Contaram-me que o Luís Cláudio Cunha, diretor da sucursal da "Veja", recebera um telefonema, também no dia 17, de uma pessoa que, sem se identificar e com forte sotaque castelhano, denunciara o desaparecimento de Lilian, Universindo e as crianças.

Em vista disso, ele e João Batista Scalco, fotógrafo da revista "Placard", foram ao apartamento da Botafogo.

Quando bateram, a porta foi entreaberta. No limiar apareceu uma moça com cerca de 25 a 30 anos.

- A senhora é a Da. Lilian?.

Ela confirmou em espanhol. E, de chofre a porte se escancarou. Dois revólveres 45 estavam apontados para ambos. Mandaram que entrassem, encostassem de frente para a parede. Braços para o alto. Pernas abertas. Foram apalpados de alto a baixo. Aquele que parecia ser o chefe pediu suas carteiras profissionais e retirou-se para outro aposento, a fim de parlamentar com os demais.

Retornou após uns cinco minutos e, em tom mais amistoso e conciliador, mandou que ficassem à vontade, recomendando-lhes que nada publicassem.

- São estrangeiros que residem ilegalmente no país, acrescentou.

Tudo isso não durou mais do que vinte minutos. Foram imediatamente liberados.

Depois de ouvir o relato, passei a narrar o detalhe do telefonema e das infrutíferas visitas que eu fizera ao apartamento na sexta, no sábado e domingo.

A reunião desses fatos constituía história ainda escassa, com muitos pontos obscuros, que não permitia qualquer conclusão segura. Apesar disso, havia fortes indícios de graves acontecimentos: ou tinham sido presos ou sequestrados. A única verdade concreta era que um casal e duas crianças estavam desaparecidos.

No dia seguinte - 21 de novembro - os jornais noticiavam que homens armados haviam sequestrado refugiados uruguaios. A notícia estava nas ruas. Estourara como uma bomba.

Sob o impacto da importância que a imprensa atribuía ao caso, e conhecendo os detalhes que o telefonema e as informações dos jornalistas me haviam proporcionado, eu procurava situar-me no contexto dos acontecimentos. E me perguntava: quem é Lilian Quem é Universindo? O que estariam fazendo em Porto Alegre? O que, efetivamente, lhes teria acontecido?

Se, de um lado, não dispunha de qualquer reposta objetiva para tais perguntas, de outro sentia imperiosa necessidade de ver os fatos esclarecidos. Chegava a ser uma verdadeira compulsão. Em vista disso, considerei que a alternativa mais adequada consistia em retornar ao local dos acontecimentos, isto é, ao prédio em que moravam os refugia- dos.

Lá cheguei às nove horas. A porta estava semi-aberta. Empurrei e olhei para dentro. Uma senhora de meia idade executava serviços de limpeza. Apresentei-me e pedi informações sobre os moradores do apartamento.

-- Viajaram sem dizer para onde iam. Deixaram as chaves e um bilhete para o meu marido.

Explicou-me que era esposa do proprietário. Enquanto isso, eu sondava o ambiente e constatava algo muito estranho:

-- Puxa! Como está revirado este apartamento!

-- É. A gente aluga e sempre acontecem dessas coisas.

Havia observado que remava uma total desordem: os cinzeiros estavam cheios; o chão, recoberto de palitos de fósforos e pontas de cigarro; o tapete tinha marcas de sapatos sujos, formando um corredor de pisadas. Quando fui ao quarto, notei que o colchão estava revirado e torcido. Parecia que um batalhão havia passado por ali. Tudo indicava que alguma coisa muito estranha ocorrera. Fiz mais algumas perguntas:

-- Que dia as chaves foram entregues?

-- Ontem, por volta do meio-dia.

Diante dessa informação, raciocinei rapidamente, e o fato me surpreendeu. O proprietário - sr. Plavnik -já havia informado à Policia Federal que as chaves tinham sido entregues por um indivíduo moreno, de estatura média, com aproximadamente vinte e cinco anos. Essa a razão de minha surpresa. Se fora Lilian que mandara devolver as chaves, onde teria ela permanecido - com os filhos e üniversindo - entre os dias 17 e 20 de novembro de 1978?

Foi a primeira dúvida!

Lilian Celiberti Rosas de Casariego Universindo Diaz

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