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Esse conjunto de circunstancieis possibilitou que concluíssemos que o caso só teria uma investigação adequada quando efetivamente fossem esclarecidos alguns pontos obscuros, iniciando pelo único personagem que poderia, de forma concreta, fornecer os detalhes que estavam faltando. Enfim, todos os caminhos conduziam a Montevidéu.
Por isso, entendeu-se que a arrancada efetiva da Ordem dos Advogados, no sentido de dispor de dados que desmascarassem as versões oficiais, começaria necessariamente por Camilo, a quem teríamos acesso e se constituía em um verdadeiro trunfo a que não recorrêramos.
No dia 2 de janeiro, minutos antes de seguir para o aeroporto, eu estava preparando rapidamente a mala e, ao mesmo tempo, ouvia a "Sala de Redaçao" programa da Rádio Gaúcha conduzido por Ênio Mello. Na oportunidade, falava Jorge Tenório Noronha, Conselheiro Secretário da OAB. que tinha assumido a presidência e que, além de advogado, era também coronel do Exército. Por incrível que possa parecer, o militar-advogado estava atacando de forma inusitada e agressiva a Comissão e a própria Ordem, tendo já afirmado que oitenta por cento dos advogados do Rio Grande eram esquerdistas. Solidarizava-se com o Governo brasileiro por não apoiar nossa missão e acrescentava não estar satisfeito com as atitudes que haviam sido tomadas, motivo por que não iria ao Salgado Filho despedir-se da Comissão. Finalmente, acabou por acusar-me de receber polpudos honorários, certamente pagos pela subversão internacional para defender agitadores.
Diante de tantos despautérios, telefonei ao Ênio e solicitei oportunidade de rebater o coronel. Na verdade, eu estava profundamente irritado com tantas inverdades, mas procurei - apesar da dificuldade que tenho, ante tais situações -- manter-me calmo e devolver ao seu autor as injúrias que injustamente me assacava.
Mais tarde, depois que retornei, fiquei sabendo que alguns conselheiros haviam tomado a decisão de ir buscar na praia o Dr. Paulino de Vargas Vares, a fim de que reassumisse a presidência, tendo ele criticado a atitude do conselheiro dissidente. Mais uma vez demonstrava não ser homem de meias palavras.
Procurando um fio de lógica na atitude de Jorge Tenório Noronha, eu me perguntava: por que o Tenório não assumiu essa posição perante o próprio Conselho, quando se reunira? Por que, dias antes, havia acompanhado a decisão unânime do Conselho de aprovar a viagem? Qual o motivo de, exatamente quando estávamos embarcando e não podíamos sequer nos defender, assacar injúrias contra nós? E não chegava a outra conclusão que não fosse esta: suas atitudes eram dirigidas por alguém que estava diretamente interessado em nos desmoralizar em Montevidéu. Constituíam apenas a parte de uma trama em que ele atuava como marionete.
Foi com esse clima que começamos nossa viagem, acompanhados por vários jornalistas -- José Mítchell ("Jornal do Brasil"), Pedro Maciel e Olívio Lamas ("Veja"), José António Zulian ("O Globo"), Henrique Lago ("Folha de São Paulo") e Ênio Staub ("Folha da Manhã").
Chegando, instalamo-nos no Hotel Vitória Plaza, localizado exatamente diante do Palácio do Governo.
A primeira entrevista ocorreu no outro dia pela manha, quando recebemos, no próprio hotel, Da. Lília Celiberti. Relatou-nos que liavia sido aconselhada, pelas Forças Conjuntas, a não receber a Comissão. Diante dessa advertência, respondeu que nos receberia da mesma forma como fora aqui recebida, e que só não faria isso se a polícia impedisse o acesso dos advogados à sua residência. Revelou que o neto Camilo estava traumatizado, convencido de que os brasileiros o haviam detido e que os uruguaios o tinham libertado. Embora muito angustiada, Da. Lília não revelava medo.
Durante a tarde apareceram no hotel o Dr. Bernardo dei Campo e o Sr. Alonso Mintegui. O primeiro era advogado e havia-se ocupado do caso Flávio Tavares. O segundo é velho amigo dos brasileiros, tendo recebido Jango, Brizola e um sem número de refugiados que o procuraram em Montevidéu em 1964.
Bernardo del Campo, há muito tempo afeito a lides desse género -- com a sabedoria que lhe é peculiar e o conhecimento de causa que lhe dá a vivência no âmbito do próprio sistema vigente no Uruguai -- nos forneceu duas explicações objetivas sobre os fatos: de um lado, os governos não têm qualquer interesse no esclarecimento do seqüestro, por haver um comprometimento de ambos, uruguaio e brasileiro; de outro, embora o "habeas corpus" esteja previsto na lei uruguaia, de fato não existe, uma vez que os processos que envolvem a Segurança Nacional apenas admitem os coronéis na função de advogados.
Nessa mesma noite fomos ao apartamento da família Celiberti. Camilo se mostrava extremamente agitado, saindo e entrando sem sequer levar em consideração nossa presença. A insegurança do casal se estampava em suas faces. Quase não falavam e, quando o faziam, evitavam os assuntos que constituíam nosso principal interesse.
Eu via em Camilo nossa única esperança -- era a encruzilhada de nossa missão. O acesso que pudéssemos ter a suas informações poderia significar derrota ou triunfo. Todos respiravam expectativa, num ambiente que se tornava tenso porque o menino estava ali, passando por nós sem que tivéssemos a capacidade de descongelá-lo. A avó mantinhase impassível. Não ajudava. Sequer intervinha, num mutismo que traduzia seu respeito pelo trauma do neto. Foi então que me lembrei que ele havia passado a maior parte de sua vida na Itália, e pareceu-me que por ali se poderia chegar a uma hipótese de diálogo. Numa de suas passadas, arrisquei, num italiano clieio de incertezas e improvisações, mas que atendia às necessidades do momento:
-- Ei Camilo! io sonno amicco. Sono italiano. Abitto cerca di Milano. Vieni qui.
Certa ou errada, minha frase quebrou o gelo. Ele me olhou e veio sentar-se ao meu lado. O Dr. Melzer, que estava à nossa frente, aproveitou a oportunidade para exibir-lhe algumas fotos. Em duas delas estava o Seelig. Camilo separou ambas das demais pondo-as sobre a mesa, e, indicando com o dedo, disse:
-- Este eu conheço.
-- Conheces de onde, indagou o Dr. Melzer.
-- "Fué en mi casa", completou ele, referindo-se ao apartamento de Porto Alegre.O reconhecimento ocorreu de forma espontânea, na presença da Comissão e dos jornalistas Pedro Maciel e Olívio Lamas.
Nessa mesma oportunidade. Da. Eília contou que Camilo estivera detido no DOPS e que viajara até a fronteira acompanhado pela mãe, em dois automóveis. O prédio em que ficara, ainda segundo Camilo, tinha uma janela por onde via uma rua larga com um arroio no meio; do outro lado, uma rua, também larga, com intenso movimento.
Começávamos a ficar satisfeitos, pois as denúncias do menino já eram "meio caminho andado". Saindo do apartamento, fomos jantar no velho e lendário restaurante Morini, num clima de euforia, especialmente da parle dos jornalistas. Imaginavam a cara que faria o Seelig, quando, no dia seguinte, lesse as novidades transmitidas pelo telex do Vitória Plaza.
Dia 4 pela manha, procuramos nos avistar com o Cel. Fedcrico Silva Ledesma, Presidente do Supremo Tribunal Militar. Receberam-nos funcionárias policiais grosseiras e atrevidas tinham cara de ton-tons macoutes de saia. Com toda a descortesia de que eram capazes, informaram que o Supremo estava de vacaciones, que seu Presidente estava de vacaciones.
Parece que, naquele dia, em Montevidéu, só quem não estava de vacaciones eram os espias, pois bem na esquina da Canellones com Artigas percebemos que estávamos sendo seguidos.
Foi tomada a decisão de entrarmos em contato com a Embaixada italiana, uma vez que Roma já se manifestara a respeito, principalmente porque Lilian, era cidadã italiana "por direito de sangue". O interesse da Embaixada foi confirmado pelo Sr. Carlos Alabastro, Cônsul Geral, e já fora ratificado por duas notas encaminhadas ao Governo uruguaio e, até aquele momento, sem qualquer resposta.
Retornamos, após, à Embaixada brasileira, e expusemos ao Sr. Embaixador as razões de nossa presença no Uruguai. Embora assinalando o caso como muito sério, acrescentamos não ser de nosso interesse provocar embaraços, mas UTo-somentc obter os resultados a que visávamos com nossa missão, sem comprometimento da Embaixada.
Correia do Lago ponderou que, embora não tendo condições de apoiar nossa representação, pessoalmente estava a nosso dispor.
Quando saíamos da Embaixada, uma mulher alta, morena e bem apessoada, de tocaia atrás de uma árvore acionava constantcmentc uma máquina fotográfica. Nossos repórteres, também peritos no rápido manejo de seus equipamentos, correram em sua direçao, conseguindo tirar algumas fotos, antes que a muchacha se escafedesse, provavelmente de volta ao local das vacaciones. No mesmo instante, um Fiat que lia horas não nos dava folga também se afastou.
Concluímos que estávamos cercados de policiais, além de sermos mal recebidos pelas autoridades. Na Plaza Independência, por exemplo, verificamos que eram mantidos quatro secretas que se alternavam para assegurar a permanente vigilância.
Nossa próxima tentativa era o Prof. Barbagelata, Presidente do Colégio de los Abogados. Não foi possível que nos recebesse em vista de seu . . . estado de saúde?! Havia sido atacado pela mais recente epidemia que grassava em Montevidéu - vacaciones. Em sua forma mais grave.
Deliberamos então que procuraríamos manter uma entrevista com o Sr. Presidente da República. Chegados a Palácio, fomos atendidos pelo Sr. Egure, Secretário Particular; afirmou-nos que Sua Excelência havia-se recolhido à sua fazenda, em Colónia. Não precisou declinar o diagnóstico, cujos sintomas já nos eram por demais conhecidos.
Em vista disso, ao sair, resolvemos, com base em nossa larga experiência brasileira, realizar uma "junta médica". Sem muita dificuldade chegamos à conclusão que também a Democracia estava gravemente afetada de ... vacaciones.
Apenas, por natural imunidade ou por especial forma de vacinação, não tinham sido atingidos pelo vírus os operários da tortura, os funcionários do seqüestro, os burocratas da sevícia e os administradores da humilhação do Homem. Ao contrário, revelavam-se cada vez mais eficientes e zelosos no desempenho de sua sanha funcional, trabalhando aos domingos, aos feriados e á noite.
Todavia, a situação mais embaraçosa e pitoresca veio a suceder quando solicitamos audiência com o Ministro da Justiça, Dr. Fernando Bayardo Bengoa. Sua secretária nos recebeu entusiasmada. Suas efusões, manifestava-as falando português. Pedindo licença retirou-se para nos anunciar. Mas, quando voltou, parecia estar envergando uma máscara de cera. Contraída e nervosamente nos comunicou que qualquer entrevista deveria ser aprazada mediante as vias diplomáticas, ou seja, através do Ministério das Relações Exteriores. Com isso, cortou qualquer modalidade de diálogo. Enquanto insistíamos, explicando que o Presidente da OAB, Dr. Faoro, telegrafara ao Embaixador do Uruguai no Brasil, ela apenas repetia maquinalmente:
-- A decisão estabelecida pelo Sr. Ministro é irreversível! A decisão estabelecida pelo Sr. Ministro é irreversível! A decisão estabelecida...
Não obstante, mantínhamos a intenção de procurar o Dr. Barbagelata, e, ainda, de encontrarmos com o ilustre advogado Dr. Gurman Pacheco, indicado por Faoro. Como o foco das vocaciones estava em Punia dei Este, mesmo correndo perigo de sermos atacados pelo mal, para lá nos dirigimos. Era a tarde do dia 5 de janeiro.
Conseguimos encontrar o Dr. Rodolfo Gurman Pacheco, cuja história já conhecíamos. Por ter assumido a defesa de alguns "subversivos", havia permanecido por seis meses no cárcere, nas mais deprimentes condições, além de ter o exercício profissional interditado. Explicamos a ele as razões de nossa presença no Uruguai, que eram de natureza exclusivamente profissional, uma vez que entendíamos deixá-lo encarregado, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, para tratar do assunto do seqüestro. No entanto, à medida que íamos expondo o assunto, nosso interlocutor passou de um mal disfarçado estado de apreensão para um notório nervosismo, que se revelava no tom de voz alterado e em contrações faciais incontroláveis. Interrompeu nossa exposição e, levantando-se, foi categórico:
- "Mi posición es sumamente delicada. No lês puedo ayudar absolutamente en esta situación.'"
Depois que nos retiramos é que, face ao ocorrido, começamos realmente a poder avaliar o clima de terror imperante naquela República sulamericana, onde o Direito se achava de tal modo aviltado que o simples fato de assumir a defesa de um réu acabava configurando crime abominável. Entendemos também, com maior clareza, o motivo do desaparecimento do Dr. Bernardo del Campo e do Presidente do Colégio de los Ahogaüos. E compreendemos o verdadeiro sentido, o místico poder redentor da palavra vacaciones. Os fatos que estávamos presen- ciando interpretavam de forma irónica e definitiva uma frase que constantemente ouvíamos no Uruguai:
- "Pobre pátria - dijo Artigas - y se fué al Paraguay!"
Dia de Reis, 6 de janeiro, seria nossa despedida de Montevidéu. Havíamos batido em todas as portas, e todas se mantiveram surdas e fechadas. Não interessava o sentido maior de nossa presença. Entre a Força instituída e o Medo assumido corria o fio de nossos desígnios: nada mais havia por fazer. A Comissão dividiu-se: Melzer, Caruso e Mariano deslocaram-se para o cemitério a fim de depositarem uma coroa de flores no mausoléu do emérito jurisconsulto oriental Eduardo Couture, numa simbólica homenagem ao Direito sepultado -- mas vivo na memória dos Homens; José Mitchell e eu fomos ao apartamento dos Celiberti, para apresentar as despedidas da Comissão. Nessa oportunidade, em conversa com Camilo, pudemos obter mais três informações que consideramos importantes: que uma mulher os atendera, a ele e a Francesa, enquanto tinham estado detidos no DOPS; que ele havia tentado fugir, mas fora apanhado quando atingira o terceiro andar; que no prédio do DOPS estiveram uma ou duas pessoas que falavam espanhol.
De volta ao Brasil, foi elaborado um relatório cujas conclusões se resumiam no seguinte:
"1º) Que Lilian e os menores, antes de serem conduzidos ao Uruguai, estiveram detidos em dependências da Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul;
2º) que a identificação pelo menor Camilo, do Delegado Pedro Seelig, envolve participação deste na remoção coativa;
3º) que a saída de Lilian, seus filhos, e LJniversindo do território brasileiro, resultou de atos coercitivos, ao arrepio da lei, praticados por agentes de autoridade pública, em abuso de poder.
4º) A remoção compulsória foi articulada de maneira a que Lilian e LJniversindo fossem presos no Uruguai e as crianças ficassem sob a condição de reféns. Devemos registar que nos contatos que mantivemos no Uruguai colhemos que há um consenso de que remoções e prisões como essa, objeto de nossa missão, são comumente feitas em acordo entre os segmentos de forças de segurança de países vizinhos, procedimento inadmissível onde vige o Estado de Direito.
5º) Nessas condições, ademais da apuração da responsabilidade dos implicados nos atos delituosos, deve o Governo exigir do Uruguai a restituição ao Brasil das vítimas da violência, como é das normas do Direito das Gentes, do respeito à soberania Nacional e do acatamento à hierarquia das autoridades brasileiras;
6º) Em consequência da natureza, condições e circunstâncias da prisão de Lilian, seus filhos e pais encontram-se submetidos a um estado de inequívoco constrangimento, e que,
7º) A recusa das autoridades uruguaias em receber a comissão da OAB-RS, harmonizando-se com outros indícios colhidos em Montevídéu, levam a ponderar que depoimentos prestados pêlos presos antes de sua restituição ao Brasil, com os menores, carecem de credibilidade.
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