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Era uma vez um menino que sonhava ser jogador de futebol. Aspirava à glória que um bom desempenho sobre o verde dos gramados já proporcionara a tantos rapazes iguais a ele, na agilidade e no jogo de corpo. Mas certamente o que lhe garantiria um grande futuro seria seu drible pitoresco. Lançava uma perna à frente e a outra para trás, enganando o adversário com a graça liábil de um ciclista. Do prenome -- Orandir -- ficou sendo Didi. De seu drible inconfundível saiu o Pedalada: Didi Pedalada.
Seelig, que não perdia jogo no Beira-Rio, deveria muitas vezes ter aplaudido aquele falso ciclista em alguns de seus lances. Em outros, deveria ter vibrado. Mas, com o passar do tempo, como muitos torcedores do Internacional, perceberia que a glória de Didi não chegaria pêlos caminhos do gramado. Seu futebol ia fenecendo. No jogador, salvava-se apenas o ciclista, pois a pedalada era seu único recurso. No resto, em nada se destacava. E Seelig terá pressentido a decadência do craque. E terá tirado suas conclusões pessoais, imaginando que, na polícia, ele talvez tivesse mais futuro e melhor aproveitamento.
Assim, o garoto que queria ser um grande jogador acabou mudando de time, coisa relativamente simples. Era só aceitar as ordens de outro capitão ... e jogar outro jogo, cujos lances nem sempre eram pitorescos ...
Era unia segunda-feira. O toque do telefone interrompeu a azáfama do fim de tarde de Luís Cláudio na sucursal da "Veja". Era uma voz nervosa e rápida dizendo:
- Conheces o Dídi Pedalada? Era o cara que estava no apartamento de Lilian no dia do seqüestro.
O telefonema foi rápido, mas suas consequências eram extensas. A imprensa agitou-se: fizeram-se perguntas, pediram-se descrições, revisaramse arquivos, buscaram-se fotos. Num deles, lá estava o moço. E Luís Cláudio exclamou:
-- Foi ele! Foi ele quem disse no apartamento que eu tinha entrado numa "baita fria".
Logo movimentaram-se os jornalistas para localizarem oex-craque, para um contato pessoal. Em vista das dificuldades, armaram um esquema com a vizinhança e fizeram-no saber que desejariam uma reportagem sobre a equipe do Internacional de 1968.
Mas, como policial, já farejara o que eslava porvir: tinha desaparecido. E agora era a própria polícia que lhe dava cobertura.
Diante das novas ocorrências, os setores oposicionistas se irritaram. Os deputados do MDB sugeriam, no plenário da Assembleia, a exoneração do Cel. Moura Jardim, acusando-o de acobertar o policial desaparecido. O Deputado Valdir Walter afirmava que a preocupação permanente do Secretário da Segurança em inocentar a polícia se constituía num verdadeiro escândalo. Carlos Augusto de Souza chamava atenção para o fato de, identificando o policial, os jornalistas haverem feito o que a polícia não fizera. Pedro SimonJá eleito Senador, acusava o Governo de preocupar-se mais com encontrar justificativas do que com apurar responsabilidades. Lélio Souza, líder da bancada, requeria ao Presidente da Assembleia a convocação do Secretário de Segurança, "a fim de que fosse ouvido perante a Comissão de Justiça da Casa, no sentido de dar à opinião pública os esclarecimentos a que tinha direito".
Todo o panorama havia sido agravado pela nota oficial de Moura Jardim, afirmando que até aquele momento nada fora apurado "como atuaçao irregular" do policial Orandir P. Lucas. E continuava: "Das investigações já procedidas reafirmamos que nenhum órgão da Secretaria de Segurança Pública teve qualquer participação na ocorrência".
Em Brasília, o Senador Paulo Brossard afirmava:
"enquanto o Sr. Wagner, acusado de crimes de guerra durante o nazismo, só será extraditado se assim decidir o STF, os uruguaios, como animais, foram contrabandeados para o outro lado da fronteira, sem forma nem figura de juízo."
Em Montevidéu, com gesto apreensivo e amedrontado, Camilo reconhecia Didi como um dos seus seqüestradores, para o jornalista Anilson Gantes da Costa, enviado especial da "Folha da Manha". O mesmo repórter, por outro lado, informava que os jornalistas que circulavam no Uruguai eram sempre seguidos por policiais, e que a família Celiberti estava vivendo um clima de insegurança, apreensão e pânico.
A imprensa não cessava de, na forma mais decidida, agitar os acontecimentos. Ninguém acreditava que em face das irrecusáveis evidências o Governo do Estado deixasse de cumprir com a obrigação de tudo esclarecer -- "como questão de honra".
O Governador sentia o peso da própria responsabilidade. Sua gestão estava chegando ao fim e era mister que a concluísse sem mácula. De sua fazenda, em Vacaria, então, onde descansava, anunciou uma entrevista coletiva para o dia 27 de dezembro.
Diante disso, todos esperávamos que viesse para fazer uma denúncia de "alto a baixo", pois certamente não iria tolerar que os fatos o desmoralizassem.
Naquele mesmo dia, porém, o Comandante do Terceiro Exército convocava o Cel. Macksen de Castro para uma reunião matinal. Evidentemente, o assunto era "seqüestro", pois mais tarde dirigiu-se, juntamente com o Chefe do Estado Maior ao Palácio Piratini, onde já se encontravam o Secretário de Segurança e o Superintendente dos Serviços Policiais. A reunião durou vinte minutos.
E Guazelli, que parecia ter vontade de "virar a mesa" de ficar no alto, acabou negando qualquer especulação sobre a exoneração do Sr. Secretário de Segurança, aceitando o inócuo relatório do Cel. Moura Jardim. Com tal atitude, o Governador estava acabando de demonstrar o quanto valia a visita de um comandante de Exército, feita em mangas de camisa, que, com a cordial companhia de outras pessoas, dentro do melhor espirito cristão natalino, foi levar "votos de Feliz Natal ao Governo Estadual".
A resposta da Ordem dos Advogados não se fez esperar. No mesmo dia, a Comissão de Investigação entregou ao Dr. Faoro o relatório da sindicância interna, contendo, entre outras, as seguintes conclusões:
"- Elementos probatórios carreados aos autos, pela sua harmonia e idoneidade, levaram esta comissão à conclusão que as aludidas pessoas de nacionalidade uruguaia efetivamente encontravam-se nesta Capital e foram coercitivamente transladadas para o Uruguai;
-- No que respeita à autoria, há inequívocos e veementes indícios de que o funcionário de nome Orandir Portassi Lucas, de alcunha Didi Pedalada, participou juntamente com outras pessoas, ainda não perfeitamente identificadas, das aludidas operações ilícitas."
O relatório terminava solicitando ao Governo urgente constituição de uma Comissão de Inquérito, composta por membros do Ministério Público, com a participação de um representante do Conselho da OAB e um da Associação Riograndense de Imprensa.
Não obstante as pressões, a Secretaria de Segurança não arredava um palmo no sentido de curvar-se às evidências. Ao contrario, partia para a coerção à própria imprensa. E, no dia 28 de dezembro, dois cinegrafistas do Canal 10 - TV Difusora -- quando se preparavam para algumas tomadas do edifício em que residia Didi Pedalada -- foram simplesmente interceptados por dois indivíduos que, aproximando-se, proibiram que o prédio fosse fotografado. Ato contínuo, arrancaram a filmadora das mãos do jornalista e ameaçaram destruí-la. Frente a essa agressão, o repórter telefonou ao Secretário da Segurança narrando o ocorrido e indagando:
-- O Sr. tomará alguma providência?
-- Vamos investigar.
-- E se não forem da pol ícia?
-- Vamos prender.
-- E se forem?
-- Bem! Aí podem ser amigos do Didi, zelando pela sua segurança.Este risível diálogo foi transcrito na "Folha da Manha" de 29 de dezembro e deixava explícita a forma de ver e de agir da máxima autoridade policial do Estado do Rio Cirande do Sul. Traduzindo em miúdos, bem miúdos: se um cidadão comete um crime . . . Prenda-se! Se um policial comete um crime . . . bem . . . reticências . . .
Mutatis mutandis, a interpretação dada pelas autoridades ao seqüestro era análoga: se um civil pratica um seqüestro, de imediato são movimentados todos os organismos policiais: fazem-se barreiras nas estradas; prende-se a torto e a direito; os batalhões de soldados tomam conta das ruas, com revistas, detenções, prisões, espancamentos.
Mas, se é a polícia a autora do seqüestro . . .
-- Quem disse que a polícia sequestra?
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