Seqüestro no Cone Sul
Mais um personagem

Seelig fora o primeiro nome a surgir. Na época em que isso sucedeu, Delegados de Polícia me comentavam:
- Só pode ser o Seelig - ou - isto é coisa do Pedrao.

Fatos, circunstâncias, indícios, reconhecimentos, enfim, várias eram as pistas que iam configurando sua participação no desaparecimento como índesmentível. Kepler, Didi, Faustina, Arvandil Ferreira da Silva Cardoso, José Cecílio Cunha e Luís Nunes Silveira - o Chucha - eram todos seus subordinados diretos.

As indicações de que Seelig tenha chefiado o grupo escalado pelo DOPS não deixavam margens a dúvida. Mas quem dera as ordens?

Ora, evidentemente o Diretor do DOPS, Delegado Marco Aurélio da Silva Reis - que não apenas convocara seus subordinados, como também tomara parte, coordenara. Para isso teria utilizado sua Brasília branca, equipada com rádio PX, conforme denúncias formuladas ao Promotor Dirceu Pinto e ao Juiz António Carlos Netto Mangabeira e noticiadas pelo jornal "Zero Hora" de 12 de outubro de 1979.

Aí está um dos principais motivos pelo qual os organismos policiais assumiram com tanto empenho a tarefa de defender seus funcionários.

De acordo com fontes bem informadas na época dos fatos, o Departamento de Ordem Política e Social estaria praticamente desativado, limitando-se a ser uma repartição cumpridora de ordens vindas de escalões superiores. E, como o plano fora elaborado pelo Departamento

Central de Informações - DCI, chefiado pelo Cel. Átila Rohrzetzer, a interligação dos fatos punha em evidência um mecanismo que envolvia todo o organismo policial rio-grandense, isto é, DOPS, DCI e a própria Secretaria de Segurança, enfim, a cúpula.

Janito, Seelig, Didi, Faustina e os demais, em última análise, estavam sendo transformados pela hierarquia superior em "buchas de canhão". Na realidade, eram os menos culpados, e bodes expiatórios de pessoas cujos nomes deviam, sob qualquer hipótese, ser resguardados.

Dessa forma, instituições policiais e militares se uniam para prestar um desserviço ao País, uma vez que eram obrigadas, por dever de ofício, a servirem de anteparo numa guerra desencadeada por um crime cuja sordidez atingiu a nobreza e a dignidade do povo gaúcho. Foram essas instituições as responsáveis pelas manobras, inclusive impedindo que o Governador Guazelli adotasse medidas que viriam pôr tudo às claras.

Faustina morreu. Seelig, Didi e Janito foram denunciados. Mas o quadro ainda não estava completo, como se pode ver pelas ocorrências que foram deflagradas por uma carta que recebi em março ou abril de 1979.

A carta, sem data nem assinatura, indicava que na rua Marquês do Herval, nº 460, residia um policial implicado no caso. Telefonei à "Folha da Manha" e solicitei o concurso do Ênio Staub.

O número não existia, e o endereço mais próximo era no nº 462 -- um pequeno edifício de apartamentos, com apenas dois pisos, uma entrada central e outra lateral. Na primeira, não fomos atendidos. Na entrada lateral apareceu uma senhora que disse não conhecer as pessoas que moravam no prédio, tendo prestado informações que nos levaram a abandonar qualquer outra medida visando a esclarecer a denúncia.

Mais tarde, porém, por descoberta dos jornalistas, vim a saber que o edifício em que estivéramos era exatamente onde residia João Augusto da Rosa. A carta tinha fornecido uma pista certa.

Dois meses se passaram sem que o personagem viesse novamente à tona. Numa tarde de domingo em que Scalco se dirigia para o estádio do Grémio, pela av. Carlos Barbosa, completamente engarrafada, passou por ele um Dodge Polara cheio de gente. Na direçao estava nosso ho- mem. . . Scalco pensou em segui-lo, mas o caminho do Polara estava livre e ele desapareceu das vistas do fotógrafo.

O tempo ia transcorrendo e mais um problema estava aberto, pois Osmar Trindade, do "Coojornal" havia comentado dispor de um codinome - "Irno" - que estaria relacionado também com o seqüestro, mas apesar de saber pesquisar, ainda não tinha pegado a ponta certa do rastro que levaria a "Irno".

De repente, estávamos em 16 de setembro, o jornal "O Rio Grande" revela que o nome verdadeiro de "Irno" é exatamente João Augusto da Rosa.

Pedro Maciel, da "Veja", que também saíra a campo, alguns dias depois exibe várias fotografias aos repórteres, entre as quais a de "Irno". Scalco impôs uma condição: ele deveria examinar em primeira mão. Quando pôs os olhos no homem sua fisionomia se transformou. Foi taxativo:

- É o cara! Não há dúvida.

Ubiraci Dias, o Bira, motorista da sucursal, deu um pulo de satisfação, pois havia acompanhado quase todas as investigações.

Afinal, quase um ano depois, estava reconhecido o homem que chefiara a operação no apartamento. Fora exatamente ele quem apontara uma pistola calibre 45 para a testa de Scalco e ficara irritado ao perceber que as pessoas que tinham chegado não eram uruguaias. Fora ele quem dera a ordem para que se encostasse à parede e retirou-se, levando as carteiras profissionais dos jornalistas até o aposento vizinho e, voltando, recomendou-lhes que nada publicassem, pois tratava-se de estrangeiros que residiam ilegalmente no país.

A fotografia que servira para o reconhecimento era do formato três por quatro e nela o policial tinha barba raspada e cabeleira. Muito diferente de quando, a 25 de outubro a Secretaria de Segurança Pública apresentou Imo aos repórteres e à imprensa: frontalmente calvo, com espessa barba e de óculos. Mesmo assim o reconheceram Luís Cláudio e Scalco. Esse artifício, aliás, de deixar crescer a barba, num despiste ingénuo, também fora utilizado por Pedalada.

Foi só nessa oportunidade que os jornalistas se aperceberam de que João Augusto da Rosa não acompanhara os outros policiais na identificação que fora feita na Assembleia, o que mais uma vez demonstrava a atitude fraudulenta que a Polícia estava sistemática e repetidamente adotando, inclusive frente à Comissão Parlamentar de Inquérito. Nessa oportunidade, o nome dos funcionários constavam de uma lista, sendo identificados mediante suas carteiras de identidade. Mas, como era a própria Polícia que fornecia as cédulas de identificação, não ficava afastada a hipótese de falsificação, consoante afirmação do Presidente da CPI, Deputado Nivaldo Soares. Os fatos posteriores acabaram mostrando a veracidade da fraude.

Esse procedimento deixou indignado o Deputado Mainardi, que, com razão, declarava a respeito:

-- É uma fraude. Uma afronta. Um menosprezo não apenas ao Legislativo, mas à opinião pública gaúcha.

Esse episódio teve como efeito uma crise colérica do Superintendente dos Serviços Policiais, Luís Carlos Carvalho da Rocha, que garantia que uma afirmação desse género devia ser provada. Caso não o fosse, os responsáveis seriam todos incursos na Lei de Segurança Nacional.

A reaçao da autoridade é extremamente irónica e demonstra com clareza como se é valente quando se detém o poder, inclusive para fazer valer uma lei iníqua para ameaçar gente que cumpre com os seus deveres e não abdica de seus direitos.

Em 25 de outubro, a Superintendência emitiu uma "Nota de esclarecimento à opinião pública", cujos três últimos itens rezavam o seguinte:

"3 -- Fica, assim, perfeitamente claro, que a Polícia Civil cumpriu lisamente com suas obrigações -- como sempre o fez;

4 -- Diante do acima esclarecido, qualquer ato com o qual se pretenda denegrir ou macular a imagem da Polícia será compelido através da via judicial competente;

5 -- Finalmente, pode o povo do Rio Grande do Sul ficar absolutamente certo de que a sua polícia não se presta e nem jamais se prestará à prática de qualquer atitude menos digna e nem se submeterá a afirmações ou insinuações aleivosas, que firam dispositivos legais"

O texto da "Nota" em confronto com a realidade dos fatos, deixava sérias suspeitas quanto à sua origem. Seria realmente um documento expedido por um órgão público? Ou seria uma cena de teatro grotesco? Ou um ato de comédia, pobre de inspiração e de linguagem? Ou uma piada de mau gosto?

Cícero Viana - numa tirada retórica que deixa dúvida se é a mediocridade ou a demagogia que está obscurecendo o brilho da inteligência, numa suposição benévola - inspirando-se no texto da "Nota", deblaterava, no dia seguinte, pela imprensa, referindo-se à "campanha sórdida que vem sendo desenvolvida contra a organização policial. "E, com relação à figura do Superintendente, acrescentava "que a cliefia da Polícia Civil brilhante e honestamente dirigida pelo Delegado Luís Carlos Carvalho da Rocha vem sendo vilipendiada, injustiçada, desconceituada e agredida com grosserias e injustiças."

De outro lado, do pódio de sua governamental autoridade, em entrevista concedida aos jornalistas no aeroporto Salgado Filho, Amaral de Souza, quando indagado, transferia o caso à Justiça:

- O problema está deslocado, repito, ao Poder Judiciário, que tem soberania e independência, e, portanto, deve investigar tudo o que se referir a este fato, ou qualquer outro.

Em última análise - provavelmente em vista do seu conceito de "competência", que já tínhamos experimentado quando estivemos em visita a palácio com o advogado francês Jean Louis Weil - para o Sr. Amaral de Souza os procedimentos administrativos são dispensáveis. Em outras palavras, os crimes dos policiais estão afetos à Justiça, e não à fiscalização do Estado. Realmente, a "competência" parecia não ser o forte do Executivo do Estado do Rio Grande do Sul!

Mas qual seria, aceitando essa visão do problema, a possibilidade de a justiça investigar? Nenhuma!

Nesse sentido, Guazelli fora mais honesto quando determinou a abertura de inquérito, com base na existência de denúncia a nível do Judiciário, embora tivesse havido absolvição pelo Conselho Superior de Polícia.

Na verdade, o que estava ocorrendo é que não só a Polícia se omitia. Além disso: brandia a Eei de Segurança Nacional contra aqueles que buscassem delatar seus crimes.

Esse fato, a nível sociológico, tem raízes que merecem exame e considerações mais profundas. Desde 1964 os problemas que envolvem policiais retroagiram aos tempos da noite medieval, pois quanto mais o sistema oficializado fala em segurança, em liberdade e em democracia, mais implanta a insegurança, a coaçao e a oligocracia repressiva.

Acusar um policial de desonestidade implica afrontar toda uma corporação. Ferir um policial significa decretar a própria sentença de morte. Isso, porque o temor e o terror que emanam dos organismos policiais estão de tal forma instaurados que abalam a consciência jurídica nacional.

As ideias do Conde de Beccaria não passam de inatingível utopia, quando se trata de reeducar e de recuperar a pessoa do delinquente. Desta forma, as penitenciárias acabam por se tornar verdadeiras universidades do crime, pois a Polícia necessita de criminosos, vive deles.

Tudo isso porque o policial, a partir de um determinado processo histórico, perdeu a própria identidade e desintegrou-se, assumindo a personalidade da instituição, que atribui a seus confrades um caráter quase místico, praticamente sagrado.

Nas Delegacias de Polícia, as coações, as atemorizações, a tortura, as sevícias e a morte imperam de mãos dadas, num festival e numa orgia aviltantes, financiadas pelas paixões que a própria instituição elaborou ou por dinheiro mesmo.

E como reagem as chefias, diante disso?

Acobertam, desmentem, sonegam, mistificam. E, para isso, apelam a respostas evasivas, forjam provas. Quando fazem inquérito, dão prioridade ao testemunho dos colegas do infrator, atribuindo-lhes a qualidade de provas "idóneas" e suficientes, a fim de que as sindicâncias venham a ser arquivadas.

Ainda em 1981, no Rio Grande do Sul, o presidente municipal de um partido político de oposição -- sem que houvesse praticado nenhum crime - foi alvo de verdadeira fuzilaria por parte de policiais militares. Com uma bala alojada na nuca foi conduzido semi-morto, para o Pronto Socorro de Porto Alegre. No dia seguinte, o Comandante Geral da Brigada Militar justificou a açao, dizendo que os policiais agiram no estrito cumprimento do dever legal.

Não significa isso o abastardamento da Lei penal?

Especialmente quando se considera que -- por antecipação -- o chefe declara a inocência de seus subordinados. Por absurdo que pareça, não se trata nem mesmo da Lei de Talião -- ollio por olho, dente por dente. É o verdadeiro terror institucionalizado, a penalidade aplicada à revelia da Lei.

E, diante do protesto ou do clamor público, a Polícia, num descaramento que chega às raias do primitivismo, declara que não pode tratar bandidos com bombons de chocolate!

Não obstante, caberia a pergunta: quantos condenados estão soltos em São Paulo, em vista do abarrotamento das cadeias? 100.000? l 20.000? E no Rio? E em Porto Alegre?

Mesmo que não se pretenda discutir as causas da criminalidade, nitidamente relacionadas à injustiça dominante no sistema, cabe a questão:

-- Por que não se constróem tantas penitenciárias quantas seriam necessárias?

-- Falta dinheiro!

Mas para as mordomias, para as negociatas, para os polpudos vencimentos dos fruidores dos paços "imperiais", para as contas anónimas ' da Suíça não falta dinheiro.

Diante disso, de que adiantam os médicos, os psiquiatras, os sociólogos, os atendentes penitenciários, os assistentes sociais, a sutileza das leis, a excelência dos conceitos e a modernidade dos métodos, se tudo não passa de um projeto abstraio e irreal que vira pó quando em confronto com a realidade penitenciária que -- mercê do excesso populacional e de condições carcerárias desumanas -- somente instigam a irritabilidade dos apenados, transformando-os em verdadeiros monstros? Assim mesmo, menor é sua monstruosidade quando comparada com a daqueles que, a soldo do terror institucionalizado, integram os grupos

que pululam pelo País - sob a aquiescência ou a inoperância dos responsáveis pela ordem - encobertos pelas mais diversas siglas, tais como a ROTA (Ronda Ostensiva Tobias Aguiar) ou o Esquadrão da Morte.

A Nação assustada assiste à adoçao da "pena de morte" com configurações paraestatal ou parapolicial. Os assassinatos brutais, selvagens e estúpidos se constituem em dramas para certas regiões do País.

Se somos um povo civilizado, devemos exigir o fim desse barbarismo e o pronto restabelecimento da ordem.

Em São Paulo e na Baixada Fluminense mata-se mais do que nos países onde a Pena Capital decorre de textos legais.

De que serve, hoje, a morte de cem delinquentes, se a miséria de amanha dará diploma de criminosos a mais duzentos?

Aí está o dilema da consciência liberal da Nação.

De nada adianta pretender tratar os efeitos se, simultaneamente, não se desenvolvem atividades objetivas no sentido de estancar as causas, a fim de impedir o reabastecimento do mercado da criminalidade.

Na verdade, o Governo deixa clara sua impotência e recua sempre mais, primeiramente face à inflação, que é a úlcera económica: depois, frente à miséria, que é a gangrena social.

E aqueles que denunciam essa realidade -- homens da imprensa, das ciências jurídicas, da intelectualidade, do clero e da política - são pagos com a moeda da ameaça e da intimidação: a Lei de Segurança Nacional. Ou temos as nossas casas invadidas - sem saber por quem nem porquê - ou somos vítimas da brutalidade e da injustiça institucionalizadas, praticadas justamente por aqueles que deveriam ser os primeiros a respeitarem as leis, exatamente porque responsáveis pelo seu cumprimento, responsáveis pela paz e pela segurança sociais.

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights