Seqüestro no Cone Sul
Entra em cena a ordem dos advogados

Ao final de novembro, as versões oficiais, estadual e federal, estavam definidas e coincidiam entre si, sob vários aspectos. Decorriam das manifestações duras do Secretário de Segurança, Moura Jardim, a nível estadual, e do Delegado Fucks, da Polícia Federal, cujas palavras ásperas não deixavam margem a outras interpretações.

Em primeiro lugar, o desaparecimento não era reconhecido como seqüestro. Em segundo, estava clara a intenção de sustar as medidas necessárias ao efetivo esclarecimento das causas e das circunstâncias últimas que haviam determinado a saída dos uruguaios do território brasileiro. Para isso foi levantada uma quase invencível muralha onde se pulverizavam todas as tentativas de esclarecimento. Acrescente-se a isso a tentativa de intimidação a que fui submetido na Polícia Federal, quase sugerindo que poderia vir a tornar-se réu quem na verdade ocupava a função de acusador.

Eu sentia que progressivamente ia-se perdendo a força da munição jurídica, e que, em breve, os acontecimentos seriam absorvidos pelo torpor do esquecimento oficial e público, sepultando definitivamente meus intentos de analisar os fatos em seus mais recônditos detalhes.

Pela primeira vez senti na carne o peso e a força da impostura oficial, sentimento que era compartilhado pelo Luís Cláudio, igualmente desanimado com a evolução das ocorrências.

Observávamos que a polícia buscava, mediante todos os pretextos a seu alcance, detectar contradições entre os depoimentos dos dois jornalistas, com o maquiavélico objetivo de minimizar ou simplesmente desprezar todas as informações que haviam prestado, imputando-lhes, inclusive, o descrédito da inveracidade.

Não obstante, apesar do risco que corríamos, vimos que novas forças vieram somar-se às nossas, pois episódios foram surgindo como força de reaçao aos procedimentos das autoridades de segurança, fazendo com que tudo novamente "pegasse fogo".

Assim, o dia primeiro de dezembro nos revelava uma surpresa agradável, através de um fato marcante que viria revitalizar o assunto de forma a conceder ao desaparecimento um status jurídico de âmbito internacional.

Na condição de Vice-Presidente, no exercício da Presidência, da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Rio Grande do Sul (OABRS), o Dr. Paulino de Vargas Vares decidiu convocar-me para expressar a solidariedade e o apoio da Ordem à minha pessoa e para prestar colaboração à causa que com toda certeza envolvia a própria Segurança Nacional. Acrescentou que a entidade não poderia ficar calada diante de um ato de tamanha violência contra cidadãos que estavam residindo em nosso território. Nesse acontecimento, afirmava Paulino, o advogado foi tolhido em sua função, uma vez que a família que representa se acha em outro país, não tendo ele condições de defendê-la como de direito.

A reunião na OAB foi muito concorrida. Havia consenso unânime no sentido de que deveria ser restabelecida a verdade dos fatos e a respeitabilidade das testemunhas. Os apelos foram veementes e em nome de um país ultrajado em sua soberania.

O Dr. Paulino Vares -- dotado de raro senso de objetividade e despido do academicismo bacharelesco, vício que em muitos casos obscurece o raciocínio lógico dos advogados -- telefonou de imediato ao Presidente do Conselho Federal, Dr. Raymundo Faoro, informando-o das intenções da Secção gaúcha da Ordem.

O Dr. Faoro, aço da mesma têmpera, manifestou sua concordância, expressando inclusive seu interesse e solicitando urgente relatório dos fatos, a fim de poder assumir posição com respeito às providências que deveriam ser tomadas.

Diante disso, redigi uma informação arrolando todos os fatos de meu conhecimento e a entreguei ao Dr. Vares, o qual a encaminhou, no dia imediato, à consideração do Conselho Federal. Esse documento, escrito em 2 de dezembro, esteve tão correio que os fatos posteriores não o desmentiram. Dele transcrevo, pela sua procedência, um reduzido trecho:

"Senhor Presidente: a explicação que mais me convence é que forças repressivas uruguaias penetraram em território brasileiro tendo por missão a captura do casal. Chegando aqui, para evitar grave conflito internacional, caso algo desse errado e mesmo porque a autoridade brasileira não iria permitir, chegando aqui, conforme ia dizendo, contrataram agentes brasileiros - e pagaram, é claro - de alguma forma pagaram, e os nossos policiais fizeram o serviço.

A única coisa com que não contavam foi a inesperada visita dos jornalistas, no dia l 7, aproximadamente às 17 horas. Até então, a tese deles seria a do simples desaparecimento. Por sinal, na América Latina existem 30 mil desaparecidos, seriam só quatro mais.

A Policia Federal reluta em aceitar a hipótese do seqüestro. Claro, se aceitasse, nossas relações com o Uruguai ficariam tremendamente abaladas. Mas me pergunto se é justo sacrificar os direitos da nação? Mas mesmo que nada disso tenha ocorrido, ainda assim teríamos que nos perguntar, especialmente agora que tanto se fala em segurança, qual a segurança efetiva que nós temos, quer sejamos brasileiros, quer sejamos estrangeiros?

Por acaso não diz a Constituição que são assegurados aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade?

Por acaso nossa casa não é asilo inviolável?

A dignidade da nação foi vilipendiada. Nossos direitos de soberania foram violados. Estamos sendo ultrajados pêlos agentes da ditadura uruguaia. Calar perante a nação nessa hora é trair nossa própria identidade nacional."

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights