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Eram 23 horas do dia 26 de novembro. Alguém me chamava ao telefone. Dizia-se policial federal. Quando atendi, explicou que não concordava com os métodos de sua repartição: "sou do métier por necessidade, e não por aceitação moral". E continuou informando que dois militares uruguaios haviam estado no Brasil, mas só quem sabia era o Seelig. Quando os jornalistas "tumultuaram", as crianças foram despachadas de carro. Forneceu outros fatos de caráter secundário, e um que merecia destaque: Seelig havia viajado no dia 21 para São Paulo.
Era o primeiro nome que surgia, e estava longe de ser desconhecido. Seu apelido era "Fleury dos Pampas", por acumular, em seu currículo, uma série infindável de ações repressivas, de cuja prática, aliás, se vangloriava. Além disso, estava envolvido, como figura central, num caso de assassinato por tortura de seu próprio filho de criação, ocorrido nas dependências do DOPS. A CPI instaurada para esclarecimento do caso -- conhecida como CPI do menor Carlos Alberto Pinto Arébalo -- foi definitiva em suas conclusões, mas Seelig teve a sorte de ser absolvido por falta de provas da autoria.
No dia seguinte ao telefonema, fui convidado a prestar depoimento na Polícia Federal, tendo lá comparecido no dia 27, na parte da tarde. Imaginava que se tratasse de um depoimento comum, semelhante àquela centena de depoimentos a que já assistira, em meus vinte anos de profissão. Muito pelo contrário -- foi uma verdadeira guerra. E eu não fora preparado para ela. Não havia qualquer preocupação em obter minhas respostas às perguntas feitas, nem intuito de esclarecimento dos fatos. Antes, procuraram, desde o inicio, vincular-me ao ex-Governador Leonel Brizola, a fim de chegar a uma série de conclusões e implicações de natureza subversiva. Adiei aquilo tudo muito estranho c, embora levasse tempo para me refazer do impacto causado por aquela situação para a qual eu não fora prevenido, a verdade é que nunca cheguei a ter receio. E acabei topando a briga no terreno que me estava sendo oferecido:
-- Tenho pelo Brizola uma amizade que me honra. Viajei ao Uruguai umas dez ou quinze vezes, passei o Natal e o Ano Novo com ele e, na minha opinião, foi o maior Governador que o Estado teve.
Ao que parece, minha reaçao teve resultados positivos. Efetivamente eles não estavam interessados nesses fatos, que já conheciam. O que realmente queriam era me abater o ânimo, a fim de que, atemorizado, eu lhes expusesse as circunstâncias que me tinham levado a tomar parte nos acontecimentos, isto é:
- como eu sabia das coisas;
- quais eram minhas fontes de informação;
- até onde eu estava informado.
É claro que, conhecendo esses lances, eles teriam maiores condições de armar a próxima jogada. Isto é, as próximas jogadas, as muitas que foram surgindo.
Após o "interrogatório", retirei-me acabrunhado da Polícia Federal, pelo maquiavelismo com que tinham conduzido meu depoimento. Mas, por outro lado, liavia uma satisfação íntima. Eu estava consciente de que toda aquela encenação fora armada a fim de que eu me traísse quando recebi a última pergunta: depois de todo o bombardeio, o Fucks olhou para mim e, de chofre, perguntou:
-- Tu ainda crés que tenha ocorrido um seqüestro? Respondi que minha opinião continuava sendo uma só.
Então, ele acrescentou:
-- Mesmo que novos fatos ocorram?
Respondi que não poderia adivinhar quais esses fatos novos que poderiam ocorrer e, por isso, minha opinião era aquela e eu não a alteraria. Diante disso, ele mandou que fossem consignadas as seguintes expressões:
-- "Que o depoente emite a seguinte opinião e a manterá, caso fatos novos ocorram -- que ocorreu um seqüestro praticado por agentes uruguaios, com a colaboração de agentes brasileiros". (sic). Nada mais disse.
Embora nem de longe eu imaginasse quais poderiam ser aqueles fatos novos, isso dava o que pensar. E muito reíleti, sem que vislumbrasse nada de esclarecedor. Só mais tarde - depois de desvendados certos detalhes do que chamei de "farsa de Bagé" - é que pude vir a compreender o verdadeiro sentido da pergunta que me fora feita.
Nesta altura dos fatos, o assunto já constituía matéria diária da imprensa. Mas não ficava aí, pois três dias antes do meu depoimento o Ministério da Justiça havia determinado a abertura de inquérito, e as policias federal e estadual deveriam encontrar a "fechadura". De outro lado, também os Estados Unidos tinham passado a demonstrar interesse pelas ocorrências. Questionado a respeito, por um jornalista, lhe disse:
-- Acredito que os Estados Unidos estejam alterando suas concepções com referência aos países do Cone-Sul da América em virtude do desrespeito aos direitos humanos. Se há interesse, é louvável. Mas não sei se é sincero.
Nesse mesmo dia - 28 de novembro - o Comandante do Terceiro Exército se manifestava, dizendo que o caso dos uruguaios "era assunto ultrapassado" e que, em sua opinião, não liouve seqüestro. Era a palavra de um General! E, como se sabe, nesses casos, as palavras dos Generais são muito respeitáveis.
Concomitantemente, vários deputados prestavam declarações à imprensa, manifestando seu repúdio ao seqüestro. Entre eles. Rosa Flores, Alceu Collares e Getúlio Dias, que lembrou o caso de Flávia Schilling:
-- Agora temos lá a humilhação de nossa Flávia Schilling, encarcerada há mais de seis anos. Ela vive a tragédia de todos nós. Até quando isso vai continuar sem resposta?
Alceu Collares, vice-líder do MDB, afirmava que o episódio se parecia muito com o caso do antigo Chanceler chileno Letelier, assassinado em Washington. E acrescentava:
-- Então, policiais uruguaios entram em Porto Alegre, sequestram um casal e seus filhos, e saem impunemente daqui? E nossas fronteiras são violadas sem que tomemos providências?
O Presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, D. Aloísío Eorscheider, por seu turno, disse que o País estava renunciando à própria soberania.
De forma idêntica manifestaram-se D. Cândido Padim, Bispo de Bauru, e o Cardeal-Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, que comentou a questão na seguinte forma:
-- Se for confirmado o seqüestro em nosso território, nossa responsabilidade é dupla, pois o seqüestro é um crime reprovado por todas as leis e pela própria civilização. O Estado é responsável pela integridade e vida de todas as pessoas que se encontram em seu território.
Até D. Vicente Scherer, Arcebispo do Rio Grande do Sul, deu seu depoimento, acentuando que ó dever de todos denunciar as injustiças.
Em Porto Alegre, o jornalista Rogério Mendelski subscrevia um editorial da 'Tolha da Manha" intitulado: "Que Deus proteja os uruguaios". Depois de afirmar, de início, que "o seqüestro está atrevessado na garganta de 115 milhões de brasileiros", indagava:
-- "Quem permitiu a entrada no pafs de agentes estrangeiros?
--Como entraram, como sequestraram essa família uruguaia sob total impunidade? O Brasil está com sua atenção voltada para esse seqüestro e não pode haver impunes nessa tarefa sórdida e covarde. Cinicamente as autoridades uruguaias afirmam que Da. Lilian e seus dois filhos cruzaram a fronteira e foram presos com material subversivo. Quer dizer, estão brincando com a honra brasileira e com nossos serviços de segurança."
Ainda mais percucientcs foram as indagações propostas pela coluna "Informe", do "Jornal do Brasil": "Com ordem de quem agiam? Para onde levaram? Que fizeram ao casal?"
Por tudo isso, pode-se observar que o seqüestro havia polarizado todas as atenções. E a repercussão começava a se fazer sentir inclusive fora de nossas fronteiras, pois as denúncias formuladas aqui eram reproduzidas por jornais da América Latina, da Europa e até dos Estados Unidos.
No dia 27 de novembro, recebi um telefonema de Patrícia Fceney, membro do Comité Central da Anistia Internacional, com sede em Londres, informando-me que a Anisíia dera início a uma campanha a nível de chancelarias, h pedira especialmente aos governos da Itália e da Suécia que se pronunciassem em favor dos detidos, que haviam residido anteriormente nesses países.
Varias foram as organizações que aqui se manifestaram, iniciando movimentos de solidariedade. Os aposentados e pensionistas do Brasil, reunidos em seu quarto congresso, com a representação de 49 entidades. registraram seu protesto e transmitiram a Da. Lílía sua solidariedade. De São Paulo, chegavam telegramas do CLAMOR -- Comité de Defesa dos Direitos Humanos. Em Porto Alegre, o Comité Brasileiro de Anistia hipotecava apoio irrestrito à necessidade de serem esclarecidos os fatos e pedia à Nação que desse condições de segurança aos próprios habitantes.
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