Seqüestro no Cone Sul
Enquanto isso, a polícia federal...

No Rio Grande dois episódios de seqüestro se destacaram: um ficou sendo conhecido como o do filho do Moeller. o outro, como o do Santino. Lm ambos os seqüestradores eram mais pessoas imaturas do que propriamente criminosos. O segundo chegou a ser pitoresco: quando, no DOPS. a Polícia procedeu à identificação do sequestrado!", as vítimas, que eram todos menores com idade entre dez e dezesseis anos, o abraçaram chorando sem poder conter a emoção que a todos envolvia.

Nos dois casos, tanto a policia militar quanto a civil agiram com eficiência, desenvolveu-se intensa atividade mediante imediatas diligências. O publico só tomou conhecimento pleno dos fatos quando já esclarecidas as circunstancias e presos os responsáveis.

Em ambos, Seelig havia coordenado os trabalhos, e o êxito do DOPS estava intimamente associado ao próprio êxito desse Delegado, propiciandu uma desejada restauração de sua imagem, que tora abalada pela morte de Carlos Alberto, o menino que vivia na casa do Delegado, e havia sido acusado de reter indebitamente mensalidades cobradas aos sócio de um clube do qual Seelig era tesoureiro. Por isso, foi o rapazinho entregue aos policiais, para que lhe dessem uma lição. Mas os excessos do tratamento policial causaram-lhe a morte, do que resultou um escândalo que culminou com a CPI requerida pelo MDB, mas que se constituiu com a maioria da ARENA. Tanto a Polícia como a CPI concluíram pela inculpabilidade de Seelig. tendo o MDB apresentado voto em separado, enquadrando o policial nas penas de homicídio. Na fase judicial, o réu foi antecipadamente absolvido pelo despacho de impronúncia.

Tal como acontecera no episódio de Carlos Alberto, também agora Seelig estava saindo impune. E mais, ao contrário do que ocorrera com os outros dois seqüestros que referi, no caso dos uruguaios a Polícia insistia no desaparecimento.

A pergunta, no entanto, persistia: como poderia um casal e duas crianças simplesmente desaparecerem de forma tão inexplicável? Compreendi então que a finalidade do billiete entregue ao Sr. Plavnik, proprietário do apartamento alugado por Lilian, era de indicar o fácil caminho de desobrigar a polícia de respostas mais consequentes.

Enquanto os organismos policiais ostentavam nítida falta de interesse na devida apuração dos fatos, a imprensa -- tomada de sagrada fúria - ingentemente buscava as pontas do véu de mistério, sondava pistas, procedia a investigação por conta própria, visando a preencher a lacuna deliberada daqueles que entendiam em descumprir suas obrigações para com a sociedade.

Até então, nunca se verificara fato assim no Brasil. Travávamos todos uma intensa guerra feita de batalhas cotidianas. Como quixotes-cos heróis buscávamos impedir o estouro de uma represa de água suja que a todos cobriria de vergonha. Tínhamos consciência do serviço que prestávamos à Justiça, e, no íntimo, cada qual sabia que o fundamental era que, sobre os detritos da mentira oficial pairasse a nitidez da verdade.

Numa sequência inumerável de reuniões, trocávamos informações, mas sentíamos a permanência do peso da impostura constituída buscando aniquilar nossos esforços. Ela atuava como um sistema de forças que aglutinavam, de forma decidida e operante, tanto os altos escalões quanto a marginália policialesca do DOPS. Não era o caso de se falar em inquérito federal nem em sindicância estadual. Pelo contrário, o que se observava era a existência de um plano organizado "de alto a baixo" para escamotear a verdade.

De um lado, Luís Cláudio e Scalco tinham suas palavras constan-temente desacreditadas. De outro, quanto a mim, consideravam todas as minhas informações duvidosas, pois eu nada mais era do que um perigoso subversivo, defensor de terroristas e opositor do sistema. Ou -- conforme a versão do Delegado Marco Aurélio - estava em busca da fácil notoriedade.

Os dias que correm, infelizmente, ficarão marcados em nossa história como um dos períodos mais ultrajantes, especialmente no que respeita ao domínio da arbitrariedade instituída.

O golpe militar -- inspirado pêlos interesses dos grupos económicos apátridas - deu condições para que a riqueza se concentrasse nas mãos de poucos, favorecendo o incremento da inqüidade em plano social, da qual decorrem a miséria, a doença e a fome que grassam nos quatro cantos do País. Por via de conseqüência, institucionalizou-se a injustiça, que degenerou na violência, a qual, em última análise, é o instrumento que o sistema usa como anteparo de sua própria insegurança.

É nos ombros da Polícia, portanto, que recai, num estágio final, a tarefa de ser a defensora do sistema de forma dircta, ou seja, no confronto com o povo. Assim, os grandes esquemas do capitalismo são acionados pela guarda pretoriana nos intramuros das cúpulas dos departamentos civis e militares.

Estabelecidos os conflitos -- nas fábricas, nos campos ou nas escolas - a polícia, sem tomar consciência de seu automatismo, age "cumprindo ordens superiores"'.

Até há uns vinte anos atrás - ao menos em termos urbanos, quando ainda não representava de forma ostensiva e direta os interesses da classe dominante -- a Polícia adotava ótica bem diferente no combate ao crime. Respeitava o cidadão, porque esta era sua obrigação constitucional: só matava em legítima defesa ou no estrito cumprimento do dever legal; orientava-se, com habitualidade, por padrões de comportamento socialmente aceitáveis. E, assim, elaborava seus próprios inquéritos, ao menos no Rio Grande do Sul, com relativa honestidade.

Não se quer dizer que no passado essa conduta tenha sido isenta de restrições. Não. De Sepé Tiaraju a Zumbi, dos Muckers ao Contestado, como em muitas outras oportunidades, a Pátria brasileira foi abalada por violentos massacres, vazios de glória, mas nutridos de barbárie. Nunca, todavia se viu -- como no período dos quase quatro lustros em que dominou a supressão da vida constitucional iniciada em 1964 -- tanto empenho, tanto artifício, tanta mistificação, tanta burla, tanta hipocrisia e tanto farisaismo a serviço da obstrução da verdade, especialmente quando se trata de acobertar atos de policiais ou militares que, abusando de suas funções, cometem algum crime.

Vivemos uma época pródiga em torturas, invasões de domicílio, prisões arbitrárias, atos de terrorismo e assassinatos por motivos fúteis. E, como regra geral, os culpados nunca são sentenciados, tal é o regime de impunidade imperante.

Atingindo a todas as camadas -- desde o indígena ao intelectual, via estudantes, camponeses e operários -- filtra-se por todos os meandros da estrutura social uma atmosfera de terror, uma linfa maligna, um como sangue venoso -- composição do absurdo kafkiano com surrealis mo orwelliano - bombeado, para todo o corpo, de um coração oculto, centro de força do poder, da injustiça e da ilegitimidade.

Pois este seqüestro também está inserido no contexto destes tempos sinistros, assim como tantos outros casos. Para isso tem a palavra as famílias do ex-deputado Rubens Paiva, do operário Aósio da Silva Fonseca, de Manoel Fiel Filho, de Stuart Edgar Angel, do ex-deputado Paulo Wrigtt, de Luiz Eurico Tejera Lisboa e de milhares de outros -mortos, desaparecidos ou assassinados pelo terror, como é o caso de Da. Lida Monteiro, Secretária do Conselho Federal da OAB, vítima de uma explosão criminosa cuja responsabilidade nunca foi definida, e nunca o será, porque seu esclarecimento não interessa àqueles que, por trás do cenário, dirigem o funesto festival de arbitrariedades.

Os exemplos de burla e de mistificação já estavam implantados no sistema, à disposição da Policia, em ambas as esferas. Era só partir para o uso das mesmas técnicas, dos mesmos artifícios. E tudo sairia bem.

Convidado, mais uma vez, para um segundo depoimento na Polícia Federal, fui acompanhado pelo Presidente da Secção gaúcha da OAB, Dr. Justino Vasconcelos, dada minha condição de advogado.

Era aguardado por dois delegados: um, o responsável pelo inquérito, o Delegado Fucks; o outro, se não me engano, da Delegacia Federal de São Borja, de nome Leônidas.

Já de início percebi que não estava depondo como testemunha, mas sendo interrogado, pois o Delegado Fucks me olhou na cara, franziu a testa e fuzilou:
-- O senhor sabe que existem informes aqui que comprometem o seu passado?

Começando a sentir o jogo da intimidação, respondi no mesmo tom de voz:
-- Nada existe que possa me comprometer.
-- Ah! é? - contestou o Delegado - pois aqui está uma informação que poderia ter complicado a sua vida.
-- Pois então o senhor diga qual é.
-- Temos informações que o senhor veio do Uruguai com uma incumbência do Brizola de incendiar os ervais de Ilópolis.

Fiquei furioso. Neguei taxativamente a veracidade da tal informação e exigi que me fornecesse o nome do responsável pela denúncia.

O Delegado exibiu-me o nome de um indivíduo que não via há muitos anos. Eu retruquei:

-- Esse é um fascista, ex-membro do PRP. Muito me admira que a Polícia Federal dê crédito a essas baboseiras.
-- Não, disse Fucks, não se deu valor. A prova é que nunca tomamos providências. É só para lhe informar que existem coisas contra o senhor aqui.
-- Coisas ridículas e estúpidas -- reagi -- pouco me importa das bobagens que existem contra mim.

Por aí ficou o preambulo. E passei a ser "ouvido".

O depoimento prosseguiu com generalidades e fatos já esclarecidos em meu depoimento anterior, especialmente a viagem da Comissão da OAB ao Uruguai e o reconhecimento de Seelig por Camilo.

Praticamente ao final do depoimento, Fucks exibiu a página 13 da revista "Isto E", número 105, onde, falando sobre o caso e invocando uma parábola, eu teria dito: -- A Polícia Federal faz o papel de cego, a Secretaria de Segurança Pública faz o papel de coxo e o Itamarati, não lhe restando alternativa, se faz de surdo".

O Delegado indagava se eu era responsável pela frase. Fiquei aturdido, visto que as expressões foram Fielmente reproduzidas. Eu vacilava, sem saber qual resposta devia dar quando o Dr. Jus-tino me disse:

-- Responda se quiser. O assunto que lhe trouxe aqui foi outro. O senhor deixou de lado o recurso do sigilo profissional. Não está obrigado a responder.

A intervenção me aliviou e Fucks não teve outro recurso a não ser consignar a escusa.

Processos deste género -- objetivamente orientados para criar tensão - foram também utilizados com Luís Cláudio e Scalco.

Logo após, fui acareado com o advogado António Silveira de Castro, o que também ocorreu com o Dr. Maríano Beck.

Aos autos já haviam sido juntados o contrato de locação, e o bilhete que fora entregue ao Sr. Plavnik. Além disso, constavam também: os passaportes de Lilian, com sua assinatura, e os de Camilo e Francesca; as listas de frequência da escola maternal "Cisne Branco"; as notas das Forças Conjuntas: o passaporte falso de Universindo, com o nome de Luiz Piqueres de Miguel; investigações sobre Ofélia M. Her-nandez; listas de passageiros da Empresa Lima; carteiras falsas de Lilian e dos filhos, bem como a de Universindo, com as quais teriam entrado clandestinamente no Uruguai; recortes de revistas, fotos das vítimas e dos indiciados; laudo grafotécnico referente às assinaturas de Lilian; certidões; depoimentos; outros documentos; e, finalmente, o relatório.

Alguns documentos chamavam logo atenção. Pelas listas de frequência do colégio, por exemplo, constatou-se que Camilo e Francesca tiveram falta a partir do dia 13 de novembro de 1978, tendo sido no dia 10 -- sexta -- seu último comparecimento. Os fatos começavam a se encaixar, pois, se Lilian só saíra de Porto Alegre no dia 20 - data em que o bilhete chegou às mãos do Sr. Plavnik -- por que motivo não tinham as crianças frequentado a escola até esse dia? De mais a mais, quais as razões de seu desaparecimento repentino, sem um "até logo" à professora e aos colegas .. .

O confronto entre os fatos conhecidos e as datas proporcionava uma série de conclusões novas.

Camilo havia afirmado que tinha sido sequestrado no dia l 2 de novembro, quando, em companhia de Universindo, saía de casa para um jogo entre o Inter e Caxias, no Beira-Rio. Em consequência dessa informação, seu último dia de aula teria sido realmente dia 10, pois sábado e domingo não havia aula, e na segunda-feira, dia 13, já estaria no Uruguai.

Diante desses dados, podíamos concluir que realmente o dia "D" fora 12 de novembro, domingo.

Além disso, verificava-se que as fotos de Lilian e Universindo juntadas aos autos não eram as dos passaportes. Quem as entregara à Polícia Federal -- o DOPS ou a Polícia uruguaia?

Esta era uma das indagações que ficara no ar. O mesmo ocorria com a perícia grafotécnica, que havia sido solicitada pelo Delegado aos peritos criminais Márcio António Mendonça e Valter Pereira. Essa exigência tinha por fim elucidar se a assinatura do bilhete fluíra do mesmo punho que emitira aquela do contrato de locação. A resposta da perícia foi a seguinte:

"Face à escassez de padrões fornecidos ao confronto, sem adequabilidade, os peritos não podem concluir pela inauten-ticidade do material gráfico questionado, apesar das divergências constatadas."

Isso quer dizer que havia diferenças morfogenéticas e ideográficas, no calibre como nos retoques, mas os peritos não puderam concluir pela inautenticidade do bilhete. Tal conclusão era absolutamente incrível. A metros de distância e a olho nu se poderia afirmar, sem sombra de dúvida, que o bilhete e a respectiva assinatura eram falsos, jamais se assemelhando à do contrato de locação. E mais, a letra do bilhete e respectiva assinatura não foram sequer confrontadas com o passaporte, propositadamente omitido no exame grafotécnico.

Também a Polícia Estadual examinara o bilhete, mas, estranhamente, não se valera de nenhum outro padrão gráfico para a devida apreciação técnica. Seu exame deliberadamente estabelecia confusão, com o nítido objetivo de nada esclarecer.

"O escândalo era muito maior quando se verificava que tudo constituía parte de um plano previamente estabelecido de obstrução das informações, pois o perito deveria responder a uma segunda indagação, de lavra do Delegado Jahir Souza Pinto: "se, não podendo concluir pela autenticidade grafoscópica, se poderia chegar à autoria da falsificação".

Quando se vê que a Polícia sequer conseguia descobrir os autores do seqüestro, como poderia apontar a autoria da falsificação? O jogo de fraudes e trapaças corria solto. Entre suas peças mais importantes estavam a perícia, a analise do bilhete, a farsa de Bago, as falsas cédulas de identidade, as notas das Forças Conjuntas.

Todos esses elementos levaram a Polícia Federal a concluir, no relatório, que Universindo, Liliun e seus dois filhos haviam saído "do Brasil livremente, usando nomes e documentos falsos".

Fucks aduzia ainda que procurou buscar provas e fatos concretos abstraídos de condicionamentos circunstanciais, que poderiam retratar uma falsa realidade, e concluía dizendo não ter sido possível vislumbrar a existência do crime de seqüestro, porque os autos evidenciavam um comportamento espontâneo dos uruguaios ao deixarem o território nacional, mormente em se levando em consideração os comunicados expedos pelo Governo uruguaio como expressão da verdade.

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights