Seqüestro no Cone Sul
A primeira informaçao de Camilo

Já tinham decorrido 17 dias do seqüestro - era 29 de novembro - e estávamos diante de um quadro em que as perguntas mais importantes esbarravam diante de um véu de mistério. Eu procurava o elo perdido da informação. Alguém teria condições de fornecê-lo. Lembreime de Camilo e, num voo da memória, retornei aos meus nove anos, e revivi as aventuras de Tarzan, que me traziam as ondas da Rádio Nacional. Como qualquer criança daquela época, via naquela figura fantástica uma projeçao de minhas fantasias de aventura e de poder - subia nas laranjeiras do quintal de meu avô para, de lá, emitir meu impressionante grito de guerra. Lembrei-me de que tinha plena consciência do que fazia.

Camilo também deveria ser assim, e comecei a suspeitar de que seria ele quem nos poderia ajudar a descerrar aquele véu de incógnitas. Essa suspeita foi-se encorpando até tornar-se convicção, mas Da. Lília já tinha ido para Montevidéu. O único caminho estava no telefone. Com ansiosa expectativa aguardei que a ligação se completasse. Da. Lília atendeu-me e, após os cumprimentos, travamos o seguinte diálogo:

-- Quando e como foram detidos, pela versão de Camilo?
-- Eles iam para um jogo de futebol, caminhando por uma rua próxima do prédio onde moravam, quando alguns homens agarraram Universindo e Camilo.
-- Viajaram por terra?
-- Sim, foi isso.

Ouvindo-a, observei que Da. Lília já não era a mesma pessoa que antes estava em minha casa. A voz o denunciava -- era rouca, triste. Seu abalo manifestava-se pela inflexão sofrida e reticente. Imaginei pressões e intimidações por trás daquela mudança, e senti que talvez fosse mais prudente não insistir. O principal eu já tinha sabido: as notas emitidas pelas Forças Conjuntas eram falsas, pois Camilo informara que tinham sido presos aqui. Conscqüentemente, a iniciativa de cruzar a fronteira não fora deles.

No dia seguinte, n "Folha de São Paulo" publicava, concomitantemente, dois editoriais. Um, subscrito por Josué Guimarães, assinalava ter a Policia Federal importantes nomes em sua agenda - "bastava investigar com disposição para saber que existe aqui no Sul uma espécie de máfia sustentada por dólares escusos de caça a supostos subversivos internacionais". O outro concluía com uma pergunta enfática: "Devemos admitir que, entre nossos policiais, existem colaboracionistas com governos estrangeiros? Pois este é um problema de Segurança Nacional".

A "Folha de São Paulo", inclusive, fora o primeiro jornal brasileiro que colliera informações diretamente de Camilo. E os dados obtidos levavam à evidente conclusão de que o DOPS gaúcho não só havia sido conivente, como colaborara com a polícia uruguaia. Os detalhes fornecidos pelo menino ao correspondente da "Folha" coincidiam perfeitamente com o que me dissera sua avó:

"Fui preso num domingo, quando saí com Universindo para assistir um jogo de futebol entre Inter e Caxias, no estádio Beira-Rio. Eram treze e trinta quando fomos pegos ao sair do apartamento. Em seguida nos levaram, junto com a Francesca, de carro, para um quartel onde não tinha gente fardada, só policiais sem gravata. Era um prédio grande que ficava na frente de um riozinho com duas ruas, uma de cada lado. Ficamos lá até as vinte e uma horas, quando começamos a viajar. Viajamos naquela noite mesmo e não vi mais minha mãe. Na fronteira trocamos de carro e ficamos numa praia em Punia dei Este. Quem nos prendeu foram os brasileiros, mas haviam junto dois uruguaios."

Em comentário, a "Folha" acrescentava: "Os fatos contados não deixam dúvidas quanto ao local a que foram levados. O prédio grande e cinzento é onde funciona o Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, da Secretaria de Segurança Pública do Estado e se situa num dos mais movimentados cruzamentos de Porto Alegre: as esquinas das avenidas Ipiranga (a rua do riacho, descrita por Camilo), com João Pessoa."

Além disso, o depoimento do menino em nada discrepava dos acontecimentos verificados em Porto Alegre, que já eram do conhecimento de todos.

A repercussão das informações dadas por Camilo encontraram eco na palavra do Deputado Valdir Walter, que, em sessão da Assembleia Legislativa, afirmava: "Parece que agora começa a ficar claro que o Governo está envolvido, através de seus órgãos de repressão, dos seus chamados órgãos de segurança."

Diante da gravidade dos novos fatos, era natural a expectativa de imediata açao da polícia. Todos esperávamos que arregaçassem as mangas para, através de medidas adequadas, apurarem fatos que diziam respeito à própria natureza da função da Polícia - investigar as atividades desenvolvidas ao arrepio da lei.

Tal esperança, no entanto, se viu imediatamente frustrada, por incrível que pareça, pelo próprio Secretário de Segurança do Estado, o Cel. Rubem Moura Jardim.

O Secretário não só negava à imprensa o envolvimento da Secretaria e do próprio DOPS no desaparecimento do casal, como, em entrevista do dia 20 de novembro, com atitude irritada, chegou a garantir:
-- Essa criança uruguaia não esteve aqui.

E, diante da insistência dos jornalistas, ele continuou, dirigindo-se incisivamente a um deles:
-- O senhor tem prova disso? Eu lhe levo agora na Polícia Federal para o senhor dar isso por escrito.

Logo após, referiu-se com veemência a uma rede nacional de subversão que existiria no Estado, acrescentando que conhecia gente que recebia dinheiro do estrangeiro . . . mas não declinou qualquer nome.

O Delegado Fucks, da Polícia Federal, por seu turno, reagia com ameaças:

-- Lembro que existem no ordenamento jurídico brasileiro crimes de denunciaçao caluniosa, de responsabilidade, de omissão de socorro e co-autoria em subversão.

Suas palavras eram claras: dirigiam-se à imprensa, em geral, e, em especial, aos jornalistas Luís Cláudio e Scalco.

O "Jornal do Brasil", através do "Informe", apelava para o bom senso e para a coerência dos fatos ao comentar que, para os brasileiros, havia mais lógica no que dizia o menino do que a nota oficial divulgada por adultas autoridades uruguaias.

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights