Seqüestro no Cone Sul
Apuros de um governador

Entre as primeiras medidas que eu tomara, uma compreendia o pedido junto à Delegacia de Atentados à Pessoa, em que solicitava providências para que fosse apurada a ocorrência ou esclarecidas as circunstâncias que cercavam o desaparecimento de Lilian, Universindo, Camilo e Francesca.

Por determinação de Leònidas da Silva Reis, Superintendente da Policia Civil, minha petição fora encaminhada ao DOPS, órgão chefiado por seu irmão Marco Aurélio.

Em 15 de dezembro, a revista "Veja", o "Jornal do Brasil" e vários veículos de comunicação social de Porto Alegre voltaram a publicar acusações frontais à Polícia, o Superintendente Leònidas determinou que o DOPS prosseguisse a sindicância, sob a presidência de seu Diretor.

Dois dias antes, o advogado Jean Louis Weil acusara Pedro Seelig de ter chefiado a operação de captura e, no dia anterior, a imprensa noticiara a informação prestada pelo Dr. António S. de Castro.

Em vista disso, havia já três funcionários do DOPS implicados no caso, o que acabava tornando óbvio o envolvimento desse órgão policial nas ocorrências em questão. Por isso mesmo, a conclusão lógica é que, por estar objetivamcnte comprometido, o Departamento não poderia chefiar qualquer sindicância.

As circunstâncias deixavam evidente, também, que tanto o Superintendente da Polícia, quanto seu irmão estavam a par de tudo, pois era natural que o plano, antes de chegar a Seelig, passasse por suas mãos, tendo o Delegado subalterno sido tão-somente encarregado de sua execução.

Natural, portanto, que o Superintendente se desdobrasse em preocupações, uma vez que, num primeiro plano estava a imagem da Polícia, que deveria manter-se imaculada! Sob outro aspecto, urgia evitar que o órgão de inteligência se tornasse vulnerável às insistentes e certeiras flechadas desferidas pela imprensa, pêlos advogados e pêlos deputados.

A inexpressiva linha de frente, ademais, era formada por um Delegado, cuja figura já vinha marcada por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, quando fora considerado responsável pela morte -- sob tortura, no DOPS -- de seu filho de criação, Carlos Arébalo. E, além de Seelig, dois desqualificados policiais.

Conseqüentemente, incumbia a Leònidas e a Marco Aurélio a tarefa de safar seus subordinados. Tarefa que, é provável, considerassem relativamente simples, mercê da ingenuidade de um Secretário de Segurança e de um Governador que, embora honesto, não tinha pulso nem firmeza para decidir sobre problemas que diziam respeito à Polícia.

Necessária, proclamava a Ordem dos Advogados, se fazia a instituição de uma Comissão de Alto Nível, integrada por seus representantes, por membros da Assembleia e do Ministério Público. Tal postulação dos advogados, infelizmente, nunca veio a ser formalizada, em vista do fogo cruzado disparado diariamente pela fuzilaria das partes em confronto.

Enquanto Luís Cláudio e Scalco confirmavam, reiterada e categoricamente, que Orandir Portassi Lucas, Didi Pedalada, era um dos seqüestradores, este, com a cobertura dos organismos policiais, negava seu envolvimento.

Para o Movimento Democrático Brasileiro, todavia, não restavam dúvidas sobre o comprometimento da Polícia. Tanto o Deputado Waldir Walter quanto seu colega Carlos Augusto de Souza criticavam veementemente a bancada governista, por sua exasperante atitude de pretender isentar o Governo do inadmissível episódio. Waldir Walter aplaudia a maneira corajosa e decidida com que a Ordem dos Advogados tratava do caso, acrescentando que, se o DOPS era exatamente o principal suspeito, seu Diretor não poderia ter sido encarregado de presidir os depoimentos.

Dois meses após sua efetivaçao, o seqüestro continuava sendo manchete nos principais jornais. O vento forte, que se originara do redemoinho levantado nos pampas, agora soprava em todas as direções: ressoava no continente latino-americano e, ultrapassando o oceano, como via organizações europeias. E, como não poderia deixar de ser, passava por Brasília: o Presidente Geisel queria uma solução imediata e o Ministro das Relações Exteriores afirmava que, caso se provasse a conivência de autoridades brasileiras, elas deveriam ser punidas.

O líder da Bancada do MDB na Assembleia Legislativa, Lélio Souza, solicitava ao Governo do Estado cópia autêntica dos documentos que formavam a sindicância. Caso nada fosse apurado, a Assembleia constituiria uma Comissão Parlamentar.

Concomitantemente, o Gen. Rui de Paula Couto afirmava que o seqüestro, que supostamente teria sido praticado por elementos da Polícia uruguaia, não feria a Segurança Nacional, e observava, com uma falta de sutileza digna de nota, que esta era "uma velha prática que deveria ocorrer com frequência por baixo do pano."

Da declaração do General, acredito que se deva depreender que o território brasileiro é uma "casa de Irene", onde todo mundo entra e de onde todo mundo sai ... e tudo fica na mesma. Exceto, como continuava ele, se fosse para apreender autoridade brasileira: aí sim, o caso assumiria caráter de agressão à Segurança Nacional. Dizer isso implica afiirmar, em última análise, que o mesmo crime não existe quando praticado contra civis! Depois de uma declaração deste género, só não dá para entender o motivo por que se proíbe, no país, o voto do analfabeto!

Enquanto isso, Guazelli continuava garantindo que seria feito tudo o que fosse preciso para completo esclarecimento do assunto, afirmando serem infâmias as insinuações de que, após a visita do Comandante do 3° Exército, Samuel Alves de Souza, teria assumido comportamento mais brando.

No mesmo dia em que duzentos e trinta e seis jornalistas gaúchos, liderados pelo Presidente da Associação Rio-Grandense de Imprensa, Sr. Alberto André, entregavam à Comissão de Investigação um manifesto de apoio à Ordem dos Advogados, Guazelli recebia os resultados da sindicância elaborada pelo DOPS, através de seu Secretário de Segurança.

Três dias depois, falando de improviso, o Governador anunciava suas decisões, após exaustivo exame da matéria. Lamentou, de início, que um problema de tal ordem fosse acontecer exatamente no término de seu mandato. Referiu que determinara uma sindicância preliminar, mas que não se agradara do resultado. Por isso, no final do ano ordenou uma sindicância profunda, de alto a baixo. Mencionou a maledicência de alguns, que vislumbraram pressão na simples visita de fim de ano do Comandante do 3P Exército. E, além disso, admitiu a existência de elementos suficientes para a instauração de um inquérito administrativo, a fim de promover responsabilidades.

O Governador esclareceu não ter suspendido ninguém por entender que tal medida seria da competência do Secretário de Segurança, tendo concluído pela afirmação de que o Rio Grande não sairia enodoado do lamentável episódio.

O lacónico pronunciamento de Guazelli causava mal-estar e até espanto, pela superficialidade e pela inexpressividade que o caracterizara. Nada havia de novo em suas palavras. Nem fora apontado qualquer nome, nem esclarecido fato algum. Tudo se resumira numa manifestação inconsequente.

A sindicância, apesar de "profunda", apesar de ter sido determinada "de alto a baixo" -- para usar as palavras de Sua Excelência -- acabou não indicando: nem qual o crime praticado pelas autoridades policiais; nem os nomes dos indiciados; nem se as dependências do DOPS haviam ou não sido usadas como cárcere.

Se, na opinião do Governador, existiam elementos suficientes para um processo administrativo, impunha-se perguntar quais as explicações que teria, por exemplo, para as seguintes informações de seus subordinados:

-- em 22 de novembro de 1978, Marco Aurélio Silva Reis negou envolvimento do DOPS;

-- em 4 de dezembro, o mesmo Díretor do DOPS perguntou se a versão uruguaia não merecia crédito;

-- em 7 de dezembro, o Secretário de Segurança afirmou não haver envolvimento de policiais gaúchos;

-- no mesmo dia 7, o mesmo secretário assegurou que o inquérito preliminar isentara os policiais gaúchos;

--em 13 de dezembro, o Major Barcelos, Relações Públicas da Secretaria de Segurança, declarou que nenhum fato novo permitiria concluir pelo envolvimento de policiais gaúchos;

--no mesmo dia 13, Seelig se dizia inocente e atribuía o envolvimento de seu nome ao fato de ter acabado com a subversão;

-- em 25 de dezembro, uma Nota Oficial da Secretaria de Segurança, assinada pelo Secretário, informava que até aquela data nada fora apurado com relação a qualquer ato irregular praticado por Orandir Portassi Lucas. E falava em desaparecimento dos uruguaios do Brasil e seu reaparecimento no Uruguai.

Face a tal sequência de fatos, cabia o seguinte raciocínio: se tanta era a "inocência" e a falta de envolvimento dos policiais gaúchos, qual o material que o Governador considerava capaz de deflagrar um inquérito administrativo?

Além disso, havia outro fato grave: em nenhum momento Guazelli fez qualquer referência à violação de nossa soberania ou às pessoas que falavam espanhol, conforme as indicações de Camilo.

Com o pronunciamento oco, quem se manifestou exultante foi o ex-craque Pedalada. Do alto das dunas de seu veraneio em Capão da Canoa declarou aos jornalistas, nada mais, nada menos do que: 'Tirei essa de letra".

Na verdade, o Governador havia transferido o problema ao Secretário de Segurança, c este, por sua vez, ao Conselho Superior de Polícia, ao qual competiria o julgamento em nível administrativo.

Fosse o inquérito da Polícia Federal, fosse a sindicância administrativa, ambos estavam sendo elaborados a distância, como matéria altamente sigilosa, fora das vistas da Ordem dos Advogados. Estes profissionais, embora talvez o desejassem, não podiam aplaudir as atitudes do Governador e reiteravam que, "sem unia ampla, profunda e imparcial investigação dos fatos e suas circunstâncias seria prematura a remessa dos autos de sindicância a qualquer órgão do Ministério Público."

Uma vez que nada se conhecia sobre a sindicância, Justino Vasconcelos deliberou aguardar sua remessa à Justiça, a fim de examina-la. Marcus Melzer, em comentário às declarações do Governador, destacava que sua Excelência informara apenas aquilo que já era do conhecimento do público.

Como acima já referi, Guazelli delegara ao Secretário de Segurança qualquer decisão sobre o fato. E este o transferiu para o Conselho Superior de Polícia. Mas sobre qual matéria iria aplicar o Conselho seus cuidados? Exatamente sobre aquela sindicância colhida pelo próprio DOPS. Isso demonstra que tais jogadas constituíam um círculo vicioso e tergiversante. Qualquer departamento que interviesse no assunto acabaria apenas elaborando variações sobre o mesmo tema. Com isso, a conclusão evidente era que uma sindicância de tal ordem poderia talvez servir mais como peça burlesca do que como instrumento sério na busca da verdade dos fatos.

A Polícia perdia a seriedade sempre que tomava qualquer providência de ordem administrativa. E o relatório apresentado pelo Delegado Marco Aurélio Reis, não fugindo à regra, era marcado por comprometimento e suspeitas. Esse relatório, cuja orientação foi sempre no sentido de defender os indiciados, constava de 58 páginas. Iniciava referindo dificuldades advindas de pressões internas (não diz quais tenham sido) e externas, causadas pelo sensacionalismo do noticiário sobre o caso, ensejando temor a muitas pessoas que eventualmente poderiam ter trazido testemunhos esclarecedores .. . Desse começo já se podia avaliar o nível de hipocrisia e de tergiversação do documento.

A seguir, são historiados os fatos de conformidade com aquilo que já era do conhecimento de todos, com referências ao noticiário dos jornais, aos posicionamentos da OAB e às demais acusações endereçadas à Polícia. Mencionam-se minhas declarações e as de Jean Louis Weil com respeito à participação da polícia para o êxito do seqüestro.

Em longo item, o relatório analisou as "sedizentes vítimas", traçando extenso levantamento de suas atividades políticas e afirmando que o apartamento em que moravam servia como apoio logístico para atividades subversivas, para o quê contariam, em Porto Alegre, com o auxílio de Ofélia Mont'Serrat Hernandez Rodrigues e seu marido, o "Gordo". O relatório inclusive transcrevia na íntegra os comunicados 1400 e 1401 das Forças Conjuntas uruguaias.

Depois de acusar Lilian e Univcrsindo de ligações com o "Coojor-naP' e com a revista "Veja", o texto do Delegado faz uma análise dos depoimentos colhidos, louvando-se nos depoimentos de todos os funcionários de plantão no DOPS, os quais declararam que por suas dependências não haviam passado, entre os dias l 2 e 18, nem o casal, nem as crianças. Refere-se a um ofício pessoal, subscrito por Seelig, assinalando que, em momento algum, ele próprio ou qualquer funcionário sob sua chefia praticara qualquer ato relacionado com o caso em questão.

Na análise final, especificamente sobre o fato, o documento do Delegado ratificava a falta de provas e perguntava:

-- Que indícios, nesse sentido, são oferecidos por aqueles que se investem, ilegal e inidoneamente, em funções investigatórias?

E, a essa pergunta, o "legal e idóneo" Diretor do DOPS concluía:

-- Apenas conjecturas e suposições.

Como, então, apurar um fato cuja existência não está comprovada? Ou imputar a alguém sua autoria?

Continuando, o texto considerava que Luís Cláudio se havia equivocado ao identificar Didi Pedalada, simplesmente pelo fato de o policial "não possuir esse tipo de arma em carga".

Finalmente, o documento referia que a açao de certas pessoas e grupos, durante o desenrolar do episódio, ajustava-se ao conceito de guerra psicológica adversa. No item das conclusões, informava que os elementos colhidos e analisados não modificavam as afirmações oficiais, isto é, que nenhum órgão policial tivera qualquer participação no desaparecimento dos uruguaios e que as provas e indícios colhidos não "permitem concluir, de sa-consciéncia", que Seelig e Didi tenham tomado parte na ocorrência -- se é que realmente existiu -- pois havia apenas a palavra dos acusadores contra a dos acusados.

O desmedido cinismo do relatório fazia lembrar uma tirada de José de Alencar: "sua inocência não teria mais puro rosto e sua hipocri sia não encontraria tão impassível máscara." Com descarada insolência desprezava o valor concreto, honesto e juridicamente relevante das provas verdadeiras para, em seguida, emprestar realce a critérios subjetivos impregnados de e mica tergiversação.

Por isso, o discurso de Guazelli fora mais um desabafo do que uma tomada de posição. Além de contrafeito, o Governador estava consternado por fulminante hipocrondria administrativa. Sentia o mau clieiro exalando de fatos com grande repercussão. Tinha consciência de que se poderia dcsincumbir satisfatoriamente de seu quadriénio e, ao final, defrontava-se com um inoportuno seqüestro que tinha possibilidade de manchar sua imagem. Até então, nunca houvera problemas com o setor policial, mas agora estava diante de um impasse que exigia sua definição. E Guazelli preferiu descalçar as botas e abdicar das tarefas inerentes a seu cargo em favor dos setores dirctamente envolvidos ou, pelo menos, de duvidoso procedimento.

Por que não suspender pessoalmente Seelig e Didi? Por que não baixar determinações nesse sentido? Nada disso fez. Sequer referiu nomes ou mencionou o ato da participação.

Com isso, a posição do Governo estava definida. Em vez de uma sindicância "de alto a baixo", a autoridade escolhera a posição mais cómoda e menos honrosa -- a de baixo.

Enquanto isso, o Rio Grande foi obrigado a ouvir a descarada e tripudiante expressão de Pedalada:

-- Tirei essa de letra . . .

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