Seqüestro no Cone Sul
Terror por telefone

Nosso retorno a Porto Alegre levou dezenas de pessoas ao saguão da ala internacional do aeroporto Salgado Filho. Entre elas estavam o Presidente da Ordem dos Advogados, vários dos conselheiros, inúmeros advogados, além de populares.

Ao entrarmos, fomos recebidos com salvas de palmas, num entusiasmo que contagiava a todos.

Todos, não. Havia alguém que não estava simpatizando com aquela manifestação. Tive provas disso porque eu apenas saíra da alfândega, não tendo ainda conseguido chegar ao saguão, quando um funcionário da Polícia Federal, chamando-me, perguntou meu nome. Quando o declinei, ele enfiou a mão no bolso, procurando alguma coisa. Eu aguardava, entre curioso e apreensivo. Após a busca, estendeu-me uma intimação, solicitando que eu lesse e assinasse o recibo. Li e atendi seu pedido.

Acabava de ser intimado para comparecer, dois dias após, ao Departamento de Polícia Federal, a fim de prestar declarações.

Após retirar-me, comecei a estranhar muito o fato de ter sido procurado de forma tão intempestiva. Nem chegara a pisar em solo brasileiro, pois estava chegando de uma viagem internacional e não atingira o saguão.

Começaram a incomodar-me os vermes da suspeita: aquilo constituía muito mais que intimação. Era intimidação.

Para mim, o fato não era totalmente novo, pois já havia recebido alguns telefonemas anônimos, com ameaças sem maiores conseqüências. Mas não cheguei a supor que o pior estava para suceder, pois diante de minha falta de resposta àquelas pressões inócuas a solução seria um processo sistemático e organizado de atemorização à minha família.

Dois dias após, em 8 de janeiro, fui a Esteio, junto com Mariano Beck, para participar de uma concentração trabalhista. Na viagem, Ma-riano me informou que havia visto um carro suspeito estacionado perto de sua residência, e que fora seguido quando saíra para visitar sua sogra. O Dr. Melzer era o Presidente da Comissão e. como tal, assumia posições de magistrado. O Otávio Caruso, hábil pensador, com pendores para o jogo da diplomacia. O Mariano, com sua objetividadc e coragem, formava comigo a linha de frente. Éramos, portanto, peças importunas no jogo, que precisavam ser anuladas. Por isso, o objetivo dúplice das ameaças.

Quando, na volta de Esteio, coloquei o pé dentro de casa, senti o clima tenso. Meus filhos estavam nervosos e minha mulher não disfarçava sua aflição. Fiquei sabendo que haviam recebido insistentes telefonemas durante todo o dia. O tom não era de meias palavras. As ameaças se repetiam categóricas. Afirmavam que todos os de casa se deveriam preparar porque a açao iria começar para valer. Todos seriam mortos. O primeiro seria eu.

Se o objetivo principal era abalar o ânimo de meus familiares, ele foi efetivamente conseguido.

Eu nem ficara totalmente inteirado de todos os detalhes quando o telefone novamente tocou.

-- Deixa que eu atendo, exclamei.

Uma voz cavernosa filtrou-se pelo fio, ameaçando:

-- Cafajeste! Cachorro! Vou te dizer uma coisa: te prepara porque vou te eliminar. Tu e toda tua família.

Foi a minha deixa. Abri a boca e declamei toda a tabuada de nomes feios de meu repertório. Certo de que somente essa linguagem seria entendida pelo meu interlocutor, esgotei o repositório de palavrões e desliguei.

Minha reaçao, adequada às proporções dos ataques, parece que surtiu o efeito que eu esperava, pois as ligações foram diminuindo e a última ocorreu às quatro horas da madrugada do dia seguinte.

Em virtude desses acontecimentos, minha família decidiu, realizar uma espécie de assembleia geral. Minha mulher me explicou as razões:

--É muito duro para nós, justificava Maria Helena. É claro que por detrás disso está o Seelig, e outros estúpidos do DOPS, pretendendo nos intimidar. Mas agora já perdemos nossa tranquilidade. A cada saída de nossos filhos eu morro de preocupações.

Naquela manha ela foi a Tramandaí, buscar um de nossos filhos que passava as férias com meus pais, e reunimo-nos ao meio-dia. Todos estavam receosos em face das ameaças, e a situação, tensa.

Em virtude do clima, procurei falar calmamente, mas desde o início deixei claro que minhas alternativas eram reduzidas. Ou continuava a luta, ou me retirava covardemente, sob o peso da desmoralização. E era isso mesmo que eles pretendiam com as ameaças. Procurei explicar-lhes que a maldade institucionalizada sempre existira no mundo, e que toda a história do homem estava marcada pela presença de crises de obscurantismo. Que, no entanto, sempre houve pessoas ou grupos que, assumindo posição em face das pressões, acabaram modificando a história. Demonstrei-lhes que não tinha intenção de afrontar ninguém, muito menos o DOPS ou a Polícia Federal, mas que considerava como meu dever a luta pela verdade. Mais que um dever, um direito. O direito que cada um de nós tem de servir à causa da Justiça.

Parece que minhas palavras atuaram como um sedativo. E, aceitando a lógica de minhas atitudes até então, meus filhos se manifestaram. Foram unânimes em dizer que se era assim que eu via as coisas deveria continuar.

Foi com esse apoio que me dirigi para a OAB, onde, juntamente com o Dr. Mariano, deveria participar de uma reunião para tratar desse assunto. Como conhecia Mariano desde 1953, sabendo-o desassombrado, digno e corajoso, sabia antecipadamente de sua reaçao.

Diante da decisão de não nos deixarmos intimidar, a Ordem dos Advogados formou uma comissão com a incumbência de solicitar ao Governo providências, denunciando as ameças de morte.

Os conselheiros Marcus Melzer e Jayme Paz da Silva solicitaram audiência, tendo sido recebidos com muita discrição pelo Governador, que lhes assegurou que entraria em contato imediato com o Secretário de Segurança.

Apesar disso, estava clara a consciência de que, no regime por que passávamos, um Secretário de Segurança -- cuja escolha estava afeta aos comandos militares -- sempre teria muito mais força do que um Governador civil. Por isso, como se esperava, o Secretário não tomou qualquer medida. E ainda declarou que só haveria providências caso se formalizasse solicitação de nossa parte.

Diante de tal comportamento, que chegava às raias do ridículo, eu não me prestaria a palhaçadas. E qual o sentido de solicitar proteçao da polícia, se era a própria polícia que nos estava ameaçando?

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights